A disputa mantém-se com o Nilo sobre o comprimento, mas em todas as outras medidas (caudal, largura entre as margens, bacia hidrográfica, ímpeto mar adentro), o rio Amazonas surge como o colosso da água doce do planeta. Transporta mais água do que a soma dos seguintes sete rios mais caudalosos do planeta. Conta-se que quando os primeiros navegadores portugueses se aproximaram da costa do Brasil, estranharam o mar ter passado a ser de água doce e não se avistar terra nenhuma à distância. Os dias passavam e nada de terra à vista. De facto, o Amazonas penetra pelo Atlântico sem se misturar com a água salgada durante quatrocentos quilómetros. Um quinto da água doce do planeta que chega ao mar viaja no Amazonas.
Navegá-lo por uns dias permite uma aproximação estupefacta a esse fenómeno sobrenatural da Natureza. Vários navios de cargas e passageiros o cruzam regularmente, oferecendo geralmente uma “classe superior” que, também geralmente, é um eufemismo para uma tarimba com porta que tem fechadura ou cadeado. Sempre é melhor do que a classe económica, onde a opção consiste em fixar uma rede no tecto do porão e esperar que os dias passem.
Naveguei em diferentes ocasiões o Amazonas, perfazendo no total a subida desde Belém, no litoral Atlântico, até Yurimaguas, no sopé dos Andes e parando em lugares tão irreais e deslocados de referências, mas ao mesmo tempo tão familiares, como Almeirim, Santarém, Santo António Içá, Fonte Nova, São João Olivença, entre outros de uma longa lista que confunde a nossa percepção da geografia pátria.
Tentei na altura, interrogando os comandantes das balsas, perceber quantas milhas teria navegado em cada etapa, mas eles desconheciam essa informação. Hoje, depois de horas no Google a tentar perceber a soma dessas milhas, continuo sem conseguir a informação.
Navegar o Amazonas é um exercício de paciência. Como proeza de viajante, dessas que gostamos de acrescentar à bucket list das experiências “exóticas”, pouco acessíveis e afastadas dos roteiros do turismo de massas, navegar o Amazonas só vale a pena para quem tiver prazer na observação lenta de quase nada. De tantas em tantas horas, uma aldeia que vive em função da chegada da balsa: a animação da chegada; a azáfama dos estivadores; a alegria dos reencontros. De tantas em tantas horas, o sino a chamar para a refeição, o mesmo menu, o mesmo cheiro a frango frito e arroz com feijão, a mesma roleta-russa para uma disenteria pela falta de higiene da cozinha ou pelo uso indiscriminado da água do rio na confecção dos alimentos. A música alta na aparelhagem do bar, a indolência de uma cerveja morna no convés, o cantinho dos batoteiros a jogar cartas com sorrisos maliciosos. O calor e os aguaceiros. A única casa de banho a bordo repartida pelos passageiros de ambas as classes “económica” e “superior”. A afabilidade da conversa em brasileiro com estranhos que não sabem sequer da existência de um país chamado Portugal.
As noites são melhores que os dias, com a humidade a refrescar o corpo, as estrelas a quebrar a monotonia da cortina de selva na distância, os passageiros por fim a dormir e o silêncio por fim a deixar-me falar comigo. Hora de ir para a cama, na tarimba “classe superior” com direito a porta que tem fechadura ou cadeado. Último pensamento antes de adormecer: o dia de amanhã será igual ao de hoje.
(Crónica publicada na VISÃO 1282 de 28 de setembro de 2017)