A primeira coisa a fazer para resolver um problema é conhecê-lo. Procurar as suas causas, ver os seus contornos, perceber como evolui, avaliar a sua dimensão e os impactos que pode provocar. Não creio que seja apenas no domínio do pensamento científico que deva proceder-se assim. Pelo contrário, tal método é o melhor, seja qual for a natureza da situação com que nos defrontamos.
Escrevo isto a propósito da torrente de comentários que li e ouvi sobre o atual surto de sarampo que a morte de uma jovem de 17 anos – como seria de esperar – ainda mais intensificou. Salvo raríssimas exceções, todos esses comentários optaram por zurzir impiedosamente os adultos não vacinados e os pais das crianças que não têm as vacinas em dia, seja porque são irresponsáveis e negligentes, seja porque aderiram às campanhas antivacinas, em ambos os casos porque põem em risco a saúde e a vida de terceiros ou dos próprios filhos. O que, a ser assim ou apenas assim, seria sem dúvida inaceitável, indesculpável.
Chocaram-me o estilo e os termos utilizados, a facilidade e simplicidade com que se acusam pais e famílias, como se tudo pudesse ser reduzido à crítica do seu comportamento. Sem disfarce, não foram poucos os apelos à perseguição, à punição, à segregação, numa espiral de agressividade e irracionalidade que, surpreendentemente, contagiou gente à direita e à esquerda.
Não faltaram as mais variadas sentenças para resolver o problema: impor a obrigatoriedade da vacinação, retirar aos pais a tutela dos filhos, proibir a inscrição escolar das crianças por vacinar, suspender prestações da segurança social aos pais com filhos não vacinados, retirar-lhes benefícios em sede de IRS, congelar-lhes as contas bancárias. Houve até quem sugerisse a criminalização e lembrasse que a prisão é o lugar dos criminosos. Segundo algumas estimativas, há entre dez a quinze mil crianças por vacinar em Portugal. Alguém acredita que em Portugal haja tantos pais negligentes ou adeptos da moda antivacinas? Julgo que teriam estado bem melhor os comentadores se tivessem começado por tentar responder a esta pergunta. Porque é evidente que a resposta é “não”.
A principal razão que explica aquele número é a exclusão social em que vivem muitas famílias, longe do SNS e de tudo o mais que constitui a vida, os hábitos, os direitos, a rotina das famílias integradas. Nessas famílias não há vacinas, como não há dinheiro, comida, remédios, emprego, casa, escola ou livros. Nem médico de família. E muito menos modas antivacinas.
A exclusão social e um SNS que deixou de chegar a todos e a todo o lado são o que melhor explica esses milhares de crianças sem vacinas. Essas crianças, ou de outra forma, os seus pais, são mais vítimas que culpados. Vítimas de uma sociedade e de um estado que falham nos seus deveres, no dever de os incluir e de lhes garantir os seus direitos.
Certamente que há incúria de alguns pais e, também, quem se tenha deixado enganar pelas fantasias pseudocientíficas antivacinação. Mas, repito, tudo isso é marginal, não tem dimensão suficiente para explicar o surto em curso que, significativamente, atingiu profissionais de saúde e até pessoas vacinadas. Insistir nessa explicação é errar o alvo.A saúde pública está cheia de (maus) exemplos dos caminhos que não devem ser seguidos no controlo e combate às doenças relacionadas com comportamentos. As doutrinas proibicionistas, repressivas, autoritárias, compulsivas, punitivas, podem sossegar consciências mas falham em toda a linha. A obrigatoriedade muda o quê? Vence a exclusão, alarga o SNS, convence alguém? Claro que não.
Julgo que o governo, as autoridades e os profissionais de saúde – na esmagadora maioria dos casos – têm estado bem. Mas é preciso ir mais longe nas medidas: não basta as escolas informarem os centros de saúde dos alunos sem vacinas ou obrigá-los a uma quarentena, é preciso responsabilizar e dotar os centros de saúde dos meios que lhes permitam contactar as famílias, ir ao seu encontro, explicar as vantagens da vacinação, convencer pela persuasão e aplicar as vacinas em falta. Não acredito que haja uma mãe ou um pai que recusem. Não se pode é ficar à espera que eles apareçam. Ou que os filhos apanhem sarampo.
(Artigi publicado na VISÃO 1260, de 27 de abril de 2017)