“Temos de dar a oportunidade ao eng. Sócrates para provar a sua inocência, a ele e a todos os cidadãos.”
Isto foi dito por Amadeu Guerra, procurador-geral da República, na primeira entrevista de fundo que concedeu. Apenas surpreendendo quem anda distraído, foi a um podcast chamado Justiça Cega – alojado no espaço do Observador –, que tem como autor uma espécie de porta-voz oficioso do Ministério Público.
Começo pelo fim: em qualquer democracia liberal, em qualquer país onde houvesse o mínimo respeito pelas instituições, em qualquer sítio onde houvesse o mínimo de cultura democrática, esta afirmação do PGR teria levantado um tumulto.
Os principais dirigentes políticos poriam em causa o conhecimento dos mais essenciais pilares do Estado de direito do responsável pelo órgão constitucional que detém a ação penal, quem olha pelo regular funcionamento das instituições chamaria de imediato o PGR para que ele esclarecesse as suas afirmações, organizações de direitos cívicos fariam abaixo-assinados.
Ainda esperei que os atuais candidatos à Presidência da República dissessem alguma coisa, nomeadamente Gouveia e Melo, que tem como mandatário alguém que se tem destacado na luta pela dignificação da Justiça, mas nada. Dos sindicatos dos magistrados do Ministério Público e dos Juízes não esperava nada e nada veio, claro.
Não consigo explicar como se chegou ao limite de num texto qualquer escrito no século XXI ser necessário referir que dizer-se que se deve dar oportunidade a alguém de provar a sua inocência é regredir séculos e séculos na conquista de direitos fundamentais. Que não há nada de mais essencial numa democracia liberal do que a obrigatoriedade absoluta de ser o todo-poderoso Estado a provar que alguém cometeu um crime e não o cidadão ter de demonstrar que está inocente. Que o princípio da presunção da inocência e o da não inversão do ónus da prova são inegociáveis.
Aliás, são “uma das grandes heranças da revolução constitucional contra o Antigo Regime e o princípio inquisitorial”, como lembra o professor de Direito Constitucional Vital Moreira num texto sobre este assunto no blogue Causa Nossa – o único texto que li sobre estas declarações de Amadeu Guerra.
Bem sei que estamos na época em que se defendem coisas como a chamada lei do enriquecimento ilícito, que não passa de uma inversão do ónus da prova mal encapotada, mas chegar ao cúmulo de ver um PGR a dizer alto e em bom som que “se deve dar oportunidade de provar a inocência” vai para lá do imaginável.
Resumamos a questão: quando for o cidadão a ter de provar a sua inocência e não o Estado a provar que é culpado, já não há democracia liberal.
Basta aparecer Sócrates numa frase para tudo se perdoar. Já não são precisos direitos de defesa, acusações, julgamentos e tudo a que qualquer cidadão tem direito
Amadeu Guerra não desconhecerá estes princípios fundamentais. Vamos então imaginar que se enganou, que não queria dizer o que realmente disse, apesar do título que o autor do podcast escolheu ter sido “Sócrates tem direito a provar a sua inocência”. Porquê aguardar então para vir esclarecer o que ficou tão claro? E, insisto, porque será que ninguém politicamente responsável veio pedir esclarecimentos?
A resposta à segunda pergunta é fácil: a cobardia impera. Não têm sido os nossos principais políticos cúmplices de todos os atropelos que os setores maioritários do Ministério Público têm protagonizado? Não têm desviado o olhar quando há ministros a serem escutados durante quatro anos, quando se derrubam governos sem que se perceba porquê, quando há políticos que são eternos suspeitos, quando aparecem escutas chapadas em tabloides gentilmente fornecidas por quem investiga, quando presidentes da câmara são investigados por escolherem sem concurso chefes de gabinete, etc., etc., etc…
Pois é, podia surgir uma averiguação prévia num momento importante que a PGR se encarregaria de anunciar ou, quem sabe, uma qualquer investigação a uns negócios quaisquer. Ninguém acredita em bruxas, mas que as há, há.
Depois, basta aparecer Sócrates numa frase para tudo se perdoar. Já não são precisos direitos de defesa, acusações, julgamentos e tudo a que qualquer cidadão tem direito. Eu e muitos portugueses estamos convencidos da sua culpabilidade legal, mas chegava-nos a confissão dos empréstimos e coisas semelhantes para o acharmos indigno de exercer os cargos que ocupou. Daqui até acharmos que ele tem de provar a sua inocência vai um tiro de canhão. Porém, há quem ache que basta um passo de anão.
Num aspeto Amadeu Guerra tem razão e até pode ser que tenha sido esse subconsciente a rasteirá-lo. Não faltam casos, normalmente de políticos e de “poderosos”, que não precisam de julgamento para já terem sido sentenciados. Um arguido que já viu as suas mensagens escarrapachadas na imprensa, que foi levado para interrogatório com o acompanhamento duma televisão, que andou a ser cozinhado em lume brando durante anos bem precisa do julgamento para provar a sua inocência, de facto. Infelizmente, nem isso lhe vale.
A Justiça chegou a um estado tal que já ninguém parece ligar, mas algo grave se passa. Não admira.