O cenário era a Gare Marítima de Alcântara. Talvez pela evocação épico-marítima. Talvez pelos acessos. Ou então pelas facilidades de estacionamento. E, tal como nos grandes momentos da História, estava bem composto. Nas primeiras filas, as segundas e terceiras linhas do regime. Dois ou três autarcas, ex-dirigentes desportivos, antigos presidentes de partidos que já não existem, gente que fala na televisão sobre viroses, pescas e geopolítica; jovens vestidos de branco.
E eis que surge o homem. O cidadão Henrique Gouveia e Melo. A sério: cidadão. Sem farda, mas com casaco assertoado (há maneiras de continuar fardado sem vestir uniforme). Não renega o passado: disfarça-o. É como se abdicasse do único trunfo em nome de uma respeitabilidade ditada por comentadores. Um gesto político que finge ser neutro. Que resulta porque todos continuam a vê-lo como Almirante.
O discurso foi uma enumeração de amenidades. Daquelas que querem tocar todos os temas para que nenhum fique de fora. O mar, as empresas, o desânimo, os partidos, a juventude, a economia, a guerra. Atira-se a tudo em geral. Não se detém em nada em particular. Até sobre os Estados Unidos atira o lugar-comum dos últimos capítulos. Fiz contas por alto e obtive um total de menos dois pensamentos.
Depois há as pausas. Longas. Desconfortáveis. Deixas para palmas que demoram um bocadinho a mais do que deveriam. Uma amiga Olga arrisca um aplauso solitário. Os outros calam-se. E ele continua firme, oco, neutral. Inflexível como uma placa. O seu maior trunfo é o silêncio; e mesmo esse parece ensaiado.
É como se a seriedade bastasse, mas o que fica é só a forma. Do gesto, do casaco, do verbo gasto. Tudo o que nele é exterior.
Em 1983, ainda Portugal lambia as botas ao PREC e Ramalho Eanes era um eco de si mesmo, o Herman inventou o Oliveira Casca. Um fato de três peças vazio. Um homem que falava com peso senatorial, mas que não dizia coisa com coisa.
Como todo o génio, Herman foi sempre anterior. A sua genialidade era retroactiva. Com Oliveira Casca, Herman não estava só a brincar com a lentidão solene ou a previsibilidade semântica de Ramalho Eanes. Estava a antecipar o Almirante Gouveia e Melo. Décadas antes de o próprio aparecer, já ele existia. Sem a lucidez do Herman; sem o espelho. Só a seriedade. Só a pompa. Não em carne e osso — só a casca.
É que em Gouveia e Melo, tudo é casca. Qualquer coisa “entre o socialismo e a social-democracia”. Parece navegação. Parece conteúdo. Mas é casca. Rígida, flutuante, talvez até decorativa. Gouveia e Melo é a concretização possível de uma piada do Herman José. Uma personagem que fugiu para o mundo real.
No fim, os jovens. Sempre os jovens. Não há nada que valha a pena sem eles. Cantando e rindo. Agitando bandeiras. Mas não vinham de nenhuma juventude organizada. Vinham, sabe-se lá de onde, uns pobres-diabos, com ar de terem sido encontrados entre o metro e o acaso.
Eis o que acontece quando um grupo de cidadãos empenhados se organiza para produzir um evento político. Reveste-se de uma comicidade terna e refrescante que os partidos clássicos, com os seus grandes orçamentos, já esqueceram ser possível. E, por este andar, arriscamo-nos a que, dentro em breve, Gouveia e Melo esteja em Belém e Ventura à frente do Governo. É assim. A cada maçã a sua casca.
Manuel Fúria é músico e vivem Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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