Nenhum povo leva o almoço tão a sério como os portugueses. E, em Lisboa, almoçar não é um hábito: é um desígnio. Lisboa celebra o almoço como um sacramento, e talvez o faça com mais estrondo porque, sendo uma cidade de serviços, é habitada por quem gosta de ser servido. Ajuda também a concentração de função pública – um funcionário sem almoço é um corpo sem alma.
O almoço, em Lisboa, não é apenas uma pausa: é um pilar fundador da identidade, uma necessidade ontológica. Em 1755, entre os escombros, no meio do fumo e da lama, ainda se serviam travessas de peixe assado. Hoje já não se tropeça tanto em portas fechadas, mas houve um tempo em que um incauto que se atrevesse a ir a uma repartição entre a uma e as três da tarde dava de caras com um silêncio sepulcral. Um vácuo administrativo. Uma ruína.
Basta circular por Lisboa a essas horas para perceber. O que se encontra é uma cidade desimpedida, arejada, livre. Há lugar para estacionar o automóvel, há senha nos Correios e é já a próxima no contador electrónico, há fluidez de movimentos. Até a Segunda Circular, que só às duas da manhã lhe dão descanso, se torna verosímil como estrada. Por isso, é reservar para estas horas as tarefas que exigem mais voltas pela cidade. Quem se atrever ao jejum é recompensado. Parece Agosto.
Mas sejamos justos: não é tanto a refeição que se celebra, mas a vida. O que importa saber é isto: o lisboeta almoça para viver.
Diz-se isto com frequência, sempre acompanhado por comparações com os hábitos estrangeiros. E lá vem o passatempo nacional que move montanhas: o que fazem os outros. E o que fazem melhor. E o que nós fazemos pior. “Desperdiçamos demasiado tempo à mesa.”, “Lá fora, produz-se mais.”, “Uma sandes e está a andar.”
Ora, estou em crer que os hábitos têm valor próprio e que esse valor é directamente proporcional à sua opacidade. Quanto mais remoto, melhor. E mais: qualquer hábito é preferível ao vazio. O vazio não é apenas incómodo, gera o caos. O hábito, mesmo precário, é um princípio de ordem, ainda que instável. A repetição de um gesto não precisa de justificação para ser essencial. Quem não percebe isto nunca percebeu nada da vida. E quem nunca se sentou a almoçar como deve ser, já perdeu. Sei também que, nesse infausto dia em que acabarem com o almoço (e esse dia chegará), até os que hoje o criticam hão de lamentá-lo. “Antes havia tempo.”, “Antes almoçava-se.”, “Antes vivia-se.”
Antecipando-me, lamento já.
Mas quem leva mais a sério o almoço? Os que compreendem que a mesa não é um acessório, mas um centro de operações. Melhor: quem leva mais a sério esse pináculo existencial que é sentar-se à mesa e atacar um bacalhau assado com batatas a murro? Os que sabem que um almoço não se reduz à comida, mas à vida que ali acontece.
Há quem coma porque tem fome e há quem almoce por convicção. Uns mastigam em silêncio, entre o relógio e a obrigação; outros fazem do almoço um congresso. Para os verdadeiros adeptos, o almoço não é apenas uma refeição – é um acontecimento. É à mesa que se reescreve a história, se redefinem os princípios, se afinam golpes e se desenham futuros. Não é lenda: os conjurados afinaram a Restauração entre castanhas e nacos de javali. O 25 de Abril? Congeminou-se com polvo e azeite, num qualquer restaurante anónimo onde se lavraram sentenças entre talheres. O verdadeiro almoço tem algo de ritual e de conluio. Se há um almoço, há uma ideia; se há uma ideia, há um plano; e se há um plano, alguém há de pagar por ele.
Esta quarta-feira, o encontro foi marcado para a uma da tarde na Tasca do João. As semanas em que não almoço são mais difíceis. Porque precisamos de estar uns com os outros. Já não há clubes. Tudo o que servia para juntar pessoas tornou-se museu de si mesmo. O Estado, que sempre teve apetite para engolir tudo à sua volta, já devorou a escola, digeriu as associações, fez dos sindicatos um osso roído. Enquanto não abocanhar os restaurantes, resistimos.
Este texto era para ser sobre a queda do Governo. Ou sobre a nova mania de proclamar Lula como líder moral. Ou então sobre a morte. Tudo coisas que se conversaram esta quarta-feira, na Tasca do João. Mas acabou por ser sobre o próprio acto. E bem. Porque o almoço não é apenas sobre tudo. O almoço é tudo. Quem duvida, que tente viver sem ele.
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