Mudar para fora é muito mais fácil do que regressar para dentro. A decisão de regressar pode ser tomada de forma relativamente fácil. Pura inconsciência. Tal decisão faz disparar tudo à nossa volta. De repente estamos a voar à velocidade da luz. A achar que temos tudo sob controle.
Quando andava na escola, um dos momentos em que sentia maior ansiedade era quando estava lado a lado com dois ou três colegas na pista de atletismo à espera que a professora – que gritava que se fartava – nos desse sinal de partida. Via-a em câmara lenta a levar a mão ao peito onde estava pendurado o apito prateado. Eu conseguia ouvir a minha respiração, controlada, pausada. A prof agarrava o apito com uma mão e, ainda em câmara muito lenta, levava-o à boca. A outra mão agarrava uma pasta daquelas duras onde estavam escritos os nossos tempos nos sprints.
A calma antes da tempestade.
Insipirava muito fundo e …
Parecia que alguém nos tinha ferrado nas costas. Pimba. Desaustinados, desarticulados, ofegantes com as pernas à frente e a cabeça lá atrás. Corríamos como se não houvesse amanhã. Como se não houvesse remédio. Qual Tom Sawyer a correr descalço pela pradaria.
Foi exatamente assim que começou a época do regresso a casa. Revejo agora, com a janela apontada para o Tejo, o dia em que decidimos voltar para Portugal. Só faltava o apito. No momento em que decidimos voltar, os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade estonteante.
Pacotes. Sempre achámos que tinhamos levado “pouca coisa” e que quatro ou cinco malas e duas ou três horas de trabalho árduo seriam suficientes. Gargalhada. Ao longo de várias semanas a casa foi esvaziando e a arrecadação enchendo. Pilhas de caixotes. E ainda falta a bimby, o overboard dos putos e o que fazer às bicicletas?
Transportadora. De repente, todos os nossos amigos são peritos em mudanças e todos nos dão contactos das melhores. Parece que estão a falar das escolas dos filhos. A minha é melhor que a tua. Todas portuguesas, obviamente, apesar de quem nos atende não arranhar nem português neminglês – decido por na minha lista de intenções aprender polaco. Daria muito jeito mas como ainda não sei, foi com um nó no estômago que vi a nossa vida partir numa camioneta amarela sem ninguém me responder à pergunta “are you going straight to Lisbon?”
Vendas e ofertas. A nossa casa transforma-se em Feira da Ladra, com desconhecidos a entrar e a sair, a experimentar as ditas bicicletas que decidimos não trazer, a saltar para a nossa cama para ver se o colchão é bom, a entregar-nos notas soltas e pimba hoje dormimos no chão. O pior é quando chegamos à véspera da partida e reparamos que no jardim ainda jaz uma bicicleta e na sala duas poltronas. Inspira fundo e toca a ligar aos amigos a oferecer as poltronas que ficam lindamente lá em casa e a bicicleta que foi feita para a idade do mais velho. Por favor, venham cá buscar!
Escolas. Com o mais velho a caminho da universidade, onde inscrever os mais novos? Não vale sequer a pena perguntar a amigos pois cada um responde à sua maneira. Os prazos de inscrição acabaram. O que fazer? Com quem falar? Como é que se fazia? Não foi assim há tanto tempo. Estamos velhos. Esquecidos.
Rescindir contratos. Em Londres, o senhorio é rei. Quando se rescinde contrato de arrendamento, toca a chamar um inspetor Clouseau que faz um relatório de “check out” exaustivo. Qualquer risco na parede é fotografado e gravado. Para abater quando for hora de devolver a caução. Depois, há sempre entrelinhas e trampas às quais não ligámos quando assinámos contrato e que agora nos deixam em situação de pré-ataque de nervos.
Respirar. Pouco. Dormir. Enquanto há cama.
Despedidas. Andamos de jantar em jantar, de abraço em abraço sem realizar que nos vamos embora e que somos nós o centro das atenções. Os amigos estão mais sensíveis do que nós, sentimo-nos muito queridos mas não percebemos bem o porquê de tanta lamechice. Não conseguimos parar para pensar na falta que nos vão fazer (sabemo-lo agora) e nas amizades boas que criámos. Afinal, a meta ainda está lá à frente, por isso, toca a continuar a sprintar.
Viagens. O cão. Como é que nos esquecemos do cão?! Toca a ligar para transportadoras, companhias aéreas e tentar despachar o pobre cachorro. E não esquecer que antes da viagem o animal tem que ir três vezes ao veterinário. Tem que tomar uns drunfos que até podem ser dados pelo dono mas como o veterinário tem que assinar, têm que ser dados na clínica, à frente do doutor. Três idas ao “vet” que equivalem a algumas centenas de libras porque afinal o seguro não inclui tratamento de expatriação.
Quase, quase. Ainda há as malas para o avião que pesam sempre dois ou três quilos a mais, o que gera o último momento de stress antes do embarque. Quando nos sentamos no avião, temos a sensação de estar a descansar a meio da maratona.
E depois aterramos. Chegamos à meta, tal como na escola. Estamos cá. Ofegantes.
E agora?
VISTO DE FORA
Grelha final:
– Dias sem ir a Portugal: estou cá. Londres está triste, fria e chuvosa desde que a abandonei.
– Nas notícias por aqui: o que é “aqui”? Não me façam esta pergunta.
– Sabia que por cá…idem. Cá? Londres? Lisboa?
– Um número surpreendente: 10 dias em Lisboa e ainda não consegui estar com ninguém.