“Tudo bem?” Quantas vezes fazemos esta pergunta por dia, sem sequer esperarmos pela resposta, seja porque realmente não nos interessa, seja porque a presumimos afirmativa? Pois naquele dia tudo o que interessava era a resposta, que aliás dispensava qualquer pergunta prévia: “eu estou bem”.
Esta foi a frase que mais vezes disse – e sobretudo escrevi – nesse dia. “Eu estou bem”. É curioso como a resposta que habitualmente omitimos ou ignoramos se transforma, de repente, na resposta mais importante, mais desejada, mais necessária. Se bem que, como também vim a descobrir nesse dia, quando oferecida espontaneamente, sem que alguém a tenha solicitado, possa gerar um efeito contraproducente. Destinada a sossegar o interlocutor, acabou por inquietar quem ainda não se tinha apercebido do motivo de tal esclarecimento, assim tão estranha e inopinadamente explicitado. Porque eu estava, de facto, bem, mas tudo à minha volta estava mal.
À minha volta estava uma estação de metro em hora de ponta, a estação de metro no fundo da minha rua, onde ainda na véspera à noite tinha deixado uma colega no regresso de um jantar, onde ainda agora de manhã uma bomba tinha explodido. À minha volta estava um terminal de aeroporto, onde na tarde seguinte era suposto estar a apanhar um voo, onde nesta manhã tantos sonhos tiveram uma aterragem forçada.
Dito assim, parece que estive no centro dos acontecimentos. Nada mais errado. Passou-me tudo ao lado. Felizmente passou-me ao lado. Literalmente ao lado. Fui contactado por uma jornalista, nesse mesmo dia, para dar o meu testemunho. Declinei. Não tinha nada para contar. E, na verdade, não me apetecia falar. “Eu estou bem”, era quanto bastava por agora. Não tinha ainda digerido os acontecimentos daquela manhã.
Mais tarde relatei a muita gente as sensações desse dia e dos que se seguiram. Mas esta é a primeira vez que escrevo sobre o assunto. Será, porventura, um tema demasiado pesado para inaugurar uma rubrica – que a Visão em boa hora lança e que se pretende informal e descontraída – sobre experiências de vida de portugueses a residir no estrangeiro. Mas, em retrospetiva, esta foi a experiência que mais marcou a minha recente vivência em Bruxelas.
É, em todo o caso, uma história pouco radiosa e que nada tem de épico. No plano pessoal, esta é a história de um dia inteiro que passei enfiado em casa, agarrado à internet e às redes sociais (“eu estou bem”). Esta é a história de um dia em que decidi dormir até um pouco mais tarde e, em vez do habitual despertador, fui acordado pelo som de sms aflitas e de sirenes intermináveis. Esta é a história de um dia em tive medo – sim, medo – de sair à rua.
No dia seguinte já não. Um misto de comoção e de curiosidade atraiu-me à rua. Mais do que isso, foi a necessidade de tomar posição, de abandonar o conforto seguro e protegido do lar e insurgir-me publicamente contra a barbárie à solta. Participei no minuto de silêncio em frente à Comissão Europeia, desci até ao centro (onde, a provar que ainda sou mais turista do que local, estive numa Grand Place praticamente deserta, salvo a muita polícia, mas não me ocorreu ir logo ali ao lado, à Place de la Bourse, onde as primeiras manifestações populares de solidariedade começavam a tomar forma), fiz questão de almoçar umas moules com frites, acompanhadas de cerveja belga, e a seguir comer uma gaufre. Pode parecer cliché, mas naquele dia via-o como um statement, para me afirmar em sintonia com o país que recentemente me acolheu, para tornar claro que partilhava a sua dor, para comungar do seu orgulho nacional subitamente exponenciado em face de tal ataque.
(“ataque cobarde”, li e ouvi eu muitas vezes nos dias seguintes. E nunca percebi porquê. Apoucar quem comete tal atrocidade poderá fazer-nos sentir melhor, mas não me parece muito rigoroso. Alguém que se explode a si próprio não deve ser um cobarde. Pelo contrário, esse ato terminal deve implicar uma elevada dose de coragem. O que leva um ser humano a ter tal coragem, isso sim, é algo difícil de compreender)
Tanto no dia que passei em casa, como no dia seguinte, o sentimento era aproximadamente o mesmo: de impotência. Impotência do mundo ocidental perante o fenómeno do terrorismo, é certo. Mas não era bem isso. Era a sensação de proximidade, sem nada poder fazer. Era a perceção aguda do risco: estávamos – estamos – todos à mercê daquilo, não numa cidade distante cujos ecos nos chegam pelo noticiário, mas na estação de metro ao final da rua. Era a necessidade de canalizar a revolta para algo com significado, sem contudo saber como ou o quê. E, ao mesmo tempo, um pasmo de incredulidade perante comportamento tão cruel e atroz.
Depois vieram as medidas de segurança agravadas e o caos para tentar sair de Bruxelas. Aproximava-se a Páscoa e muitos tinham planos de férias. Mas, com o aeroporto fechado e as ligações ferroviárias internacionais suspensas, quase todos – eu incluído – ficaram apeados. Sucediam-se os telefonemas, para tentar encontrar uma alternativa, trocar o bilhete, pedir um reembolso, descobrir outras rotas, enfim, arranjar uma solução. Houve mesmo quem, em desespero, se lançasse numa maratona de 24 horas ininterruptas de condução até Lisboa.
Eu deixei-me ficar por mais uns dias. Assisti à cidade a tentar recompor-se do choque, a tentar retomar a normalidade, a disfarçar o incómodo e a suspeita. Na Gare du Midi, à espera do TGV que acabaria por me levar a Lyon para aí apanhar um avião, eu próprio tinha subido o meu nível de alerta. Contava as dezenas de malas ao meu redor e receava o que poderiam conter. Observava os outros passageiros e especulava sobre as suas intenções.
Chegado finalmente a Lisboa, quatro dias depois dos atentados, um suspiro de alívio. “Eu estou bem”. Tinha estado sempre bem, mas o ar em Bruxelas tinha-se tornado denso, nervoso, desconfiado, opressivo. Era impossível ficar indiferente àquele turbilhão de insanidade que, sem me tocar diretamente, tinha abalado drasticamente a minha rotina. Agora era Páscoa. Depois logo se via.