Sejamos claros e também sensatos (algo que vai rareando no debate público em Portugal): por mais esforços de prevenção e de planeamento que se façam… os acidentes acontecem. Há sempre um momento em que, por negligência ou até por um motivo inesperado, a tragédia ocorre, dolorosa e brutal. Ora, é precisamente por se saber que os acidentes podem ocorrer que um político tem de estar preparado – treinado até – para enfrentar o olho do furacão, quando uma desgraça se abate sobre o território que governa ou administra. É nesses momentos difíceis que os verdadeiros líderes se definem. E estes são, inevitavelmente, aqueles que, quase por impulso, reconhecem as suas responsabilidades, com humildade. E que, em seguida, assumem, com coragem e empenho, a liderança na condução de todo o processo: promovem a aglutinação de esforços para um mesmo objetivo comum, tranquilizam a população e apontam caminhos para o futuro… sem repetir os erros do passado.
Carlos Moedas, nos anos que leva como presidente da Câmara Municipal de Lisboa, tentou várias vezes dar a ideia de que era um líder preparado para enfrentar uma calamidade. Foi isso que tentou, em fevereiro, quando anunciou aos lisboetas que estava “em pleno alerta”, após o sismo de 4,7 na escala de Richter que acordou algumas pessoas, embora sem qualquer dano humano ou patrimonial. E também é isso que tenta sempre fazer quando lembra, com grande insistência, que foi no seu mandato, e após as inundações de dezembro de 2022, que inaugurou a obra dos túneis de drenagem na cidade – cujo concurso e lançamento de projeto vinham de várias vereações anteriores. O problema é que, apesar desses “ensaios”, Carlos Moedas falhou na hora da verdade, quando a tragédia autêntica se abateu sobre Lisboa, com uma repercussão internacional só comparável à do incêndio do Chiado.
Embora ainda não vivesse em Lisboa, nesse 25 de agosto de 1988, quando as labaredas abriram uma profunda cicatriz no coração da capital, alguém poderia ter informado Carlos Moedas sobre como o então presidente da câmara, Kruz Abecasis, enfrentou a tragédia e a polémica a que ficou associado – por causa de uns canteiros e de uns bancos de betão que a câmara tinha instalado na Rua do Carmo, apesar da discordância da Associação dos Arquitetos Portugueses, e que, segundo alguns bombeiros, teriam impedido o acesso dos carros de combate às chamas.
“O disparate é voluntário”, foi a única reação que se ouviu então de Abecasis a essa acusação – que, aliás, nunca seria confirmada, nos inquéritos e investigações subsequentes, embora tenha ficado na “memória coletiva” desse dia. Fiel ao seu estilo, frontal e truculento, o então presidente da câmara não se preocupou com a sua imagem pessoal nem perdeu tempo a defender-se da “culpa” que alguns lhe atribuíam. Embora fosse frequentemente acusado de decidir tudo sozinho, nesse dia e nos seguintes, Abecasis esteve em reunião informal e permanente da câmara para analisar a situação, tentar minorar os prejuízos e começar a preparar o futuro. Prova disso é o comunicado de página inteira publicado logo no dia seguinte nos jornais, em que a Câmara Municipal de Lisboa, em coordenação com o governo, anuncia uma série de medidas de emergência, como o realojamento imediato de quem tinha perdido a residência, subsídios para quem ficou sem emprego e, mais importante ainda, o início do processo de recuperação da área atingida, com a colaboração da Associação dos Arquitetos Portugueses, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o Instituto Português do Património Cultural e a Associação dos Comerciantes de Lisboa. Tudo isto decidido numa reunião formal da câmara, realizada no próprio dia do incêndio.
Mal ou bem, Abecasis nunca se escondeu, deu “o corpo às balas” e assumiu a liderança de todo o processo, de tal forma que, apenas duas semanas depois, anunciou que tinha convidado o arquiteto Siza Vieira – recém-galardoado, então, com a prestigiada Medalha Alvar Aalto, mas que era do espectro político completamente oposto ao seu – para dirigir a reconstrução do Chiado. E essa foi uma das decisões mais certeiras e felizes tomadas nas últimas décadas na capital.
Carlos Moedas não é Abecasis nem aprendeu nada com o que se fez no Chiado. Refugiou-se no luto em vez de tomar decisões. Isolou-se quando as circunstâncias pediam que se assumisse como um líder aglutinador. Na prática, Moedas demitiu-se mesmo antes de alguém pedir a sua demissão.