Como imagem da leitura, muitas vezes se usa a frase conhecida de António Machado. É verdade que, tal como “o caminho faz-se caminhando”, também a leitura se faz lendo e, quer o andar, quer o livro, são formas de caminho que percorremos essencialmente na dinâmica de nos deixarmos ir, de nos deixarmos levar para novas experiências e ideias.
Tudo é Rio, de Carla Madeira, é um caminho que nos leva a lugares nunca antes imaginados onde os mais profundos pensamentos são postos à prova. Não se trata de uma torrente a água deste texto, mas sim de um caudal que nos lava dos preconceitos e nos mostra que a realidade do humano pode ser muito simples na complexidade.
Este livro poderia ser um triangulo amoroso; mas não o é. Ou podia ser um livro sobre um engano e uma vingança; mas também não o é. Sendo ao mesmo tempo esses dois lugares-comuns, é muito mais, é o virar ao contrário os lugares sociais e culturais das representações. Um homem mata um filho; uma mulher fica eternamente magoada; uma prostituta entra na narrativa para ocupar um lugar deixado vago. Tudo é Rio é isto tudo, mas não é ao mesmo tempo.
Se há função que a literatura deve ter, ela reside no campo do misto entre o nos deixar estupefactos e, sem perder esse sabor a novidade, nos conduzir para lugares que nos coloquem em causa. Dalva e Venâncio vivem o amor perfeito, em dedicação, carinho e entrega, mas tudo desaparece com um ato louco de ciúme: fruto das suas heranças, do que cada um remoí no seu ser, tem a atitude brutal de matar o filho de ambos.
Tudo se desenrola a partir deste ato como que genesíaco de uma nova fase nas suas vidas. Fechada sobre si mesma, a mãe enlutada como que morre para o mundo. Consciente da dor que infringira, o pai-assassino refugia-se numa busca de amor que é a recusa desse mesmo amor.
O triângulo do enredo completa-se com Lucy, a prostituta mais procurada da cidade que, nessa recusa de Venâncio ao amor, é por ele recusada, como que destruindo o mundo da prostituta. Mas a prostituta será muito mais que ela mesma, e é aqui que o livro de Carla Madeira se transforma numa Obra Prima: Lucy vai-se como que se transformar em Dalva, chegando ao limite de dar a Venâncio o filho que ele matara. Ou, noutra leitura, dar novamente a Dalva o filho de Venâncio que ele lhe matara.
Nesta narrativa, perdemos os contornos lineares da ação e das definições das personagens. Afinal, quem é quem e qual a sua função? Dalva humaniza a máquina de sexo que é Lucy, mas é a prostituta que faz reviver o casal ferido de morte. Afinal, quem é quem? Mais uma vez, no limite da interpretação quem é a mãe da nova criança?
O livro conduz-nos para caminhos completamente novos, inesperados e saborosos. Com um quase happy end, em que ao leitor é dada a possibilidade de criar as cenas seguintes, este livro de 2014, de uma das escritoras hoje mais lidas no Brasil, Tudo é Rio é uma experiência que se deve ter.
Numa escrita concisa, direta, sem rodeios, a matéria do humano é-nos colocada de forma bruta no que o estético permite. A cada passo somos levados para uma introspeção que nos confronta com a possibilidade de sermos nós a viver do outro lado, não do espelho, mas da página.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
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