Depois de há uns quatro meses ter lido Pantaleão e as Visitadoras, acabei agora de devorar Os Cadernos de Dom Rigoberto, num regresso a este tantas vezes divertido autor, depois de ter feito um mergulho profundo no recente Misericórdia de Lídia Jorge. Por vezes precisamos de fazer mudanças abruptas nas influências que decidimos injetar no nosso ser através do que lemos e, depois de um texto que me fez equacionar muito da minha existência, achei que Vargas Llosa, com os seus textos sempre repletos de tons pícaros, com um erotismo à flor-da-pele, recordando Pantaleão, o militar austero tornado proxeneta, era um bom caminho.
Mas os caminhos da forma como lemos o que lemos, é por vezes complexa. Recordo uma afirmação de Silviano Santiago na sessão no Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, quando tornava claro o que era o seu desejo quando escrevia um livro: que “cada livro crie um novo leitor”; isto é, que o livro altere o leitor e ele seja outro depois da leitura. E Os Cadernos de Dom Rigoberto são um livro nessa exata medida de alteração de todos os eus, alterando o leitor que, incauto por julgar entrar num livro leve, se confronta com questões fundamentais.
Os Cadernos de Dom Rigoberto é muito mais que uma aventura de tom erótico, a descrição dos sonhos e das aventuras sexuais de um casal que experimenta alguns limites. Os cadernos onde Rigoberto escreveu ao longo da vida excertos de autores e comentários sobre obras de arte, são a linha metodológica que é como que uma forma de comunicar com a própria narrativa. Os cadernos são quase uma vez oracular que vai dirigindo o andar de um homem inquieto, com desejo e com paixão, buscando uma mulher que perdera.
Mas mais que oracular na sua metodologia de devir, este romance é brutalmente inquietante na relação triangular que cria, uma relação nos limites da pedofilia, com um erotismo latente que se vai percebendo transformado em acto sexual. Mas a maior inquietação não se encontra nesse vislumbre pedófilo, mas naquilo que ele, rompendo idades, volta a ser do campo do oracular, senão do profético.
No jogo temporal de gerações, de uma família em que o motor de tudo é um jovem, essa ainda quase criança não é a criança em si. É, ao mesmo tempo, uma das páginas dos cadernos de Rigoberto, é a constante ligação com um artista e as suas obras, um artista de quem a criança é mais que fã, é como que uma reencarnação. A criança é, assim, o veículo que liga o tempo presente a um tempo recuado, o gatilho para despoletar todo um erotismo que, sendo transmitido pela criança, lhe é externo.
Esta junção de épocas, esta conjugação na narrativa de tempos e de personagens reais e históricos, este constante exercício em que nunca sabemos se estamos no quadro de vida ed Rigoberto ou se estamos no onírico, é a chave para o deslumbre deste texto. O inquietante, o desconcertante está aí: nunca saber se o que lemos é uma coisa ou outra. E é aí que o leitor se desqualifica como tal e se transforma em personagem do próprio livro. E é personagem, não porque entre na narrativa, mas porque é sua a interpretação dessas ambiguidades magistralmente semeadas por Vargas Llosa. E interpretando o livro ao dar-lhe vida, é inquietado, entra em choque, transmuta-se e fica diferente, confirmando a afirmação de Silviano Santiago. O leitor não sai imune de um texto que o confronta com a necessidade de decidir o que ler e como o ler.
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