O Paulo tinha aquele inchaço no pescoço há um par de semanas. Quando lhe perguntávamos o que era, Não é nada, está a desaparecer. A segurança com que o afirmava e o correr escangalhado das nossas vidas distraíam-nos de o inchaço se manter inalterado e da ameaça que o estrago da simetria do pescoço podia constituir. Até que, numa saída à noite com amigos, um deles, que é médico, Tens de ir ver isso. Passados dias, num fim de tarde, o resultado dos exames apresentou-se implacável: linfoma. Cancro é um cancro. O estrondo de um meteoro que não esmaga, mas cava o mundo em volta. E agora? Por onde seguir? O que fazer da alegria? Para legenda de um desenho que fez na segunda classe, o Paulo ditou à professora, A alegria é dar gritos de cowboy em campos pintados de amarelo. Não sei de mais ninguém que mostre, de forma tão despudorada, dominar os segredos todos da alegria. Quem não conhece o Paulo surpreende-se, ou assusta-se até, com as gargalhadas bravias com que espanta tristezas e contrariedades, e que tornam ainda mais desgrenhados os caracóis do seu cabelo grande.
O Paulo é companheiro da minha irmã há três décadas e o irmão que a vida me deu. É a solidez do afeto e não a meia dúzia de linhas mortas numa repartição do registo civil que fazem do Paulo e de mim família. Já passámos por altos e baixos, amores e desencontros, nascimentos e mortes, contentamentos e mágoas, encantos e desesperos, e tudo foi cimento a argamassar o nosso amor incondicional, imperfeito.
Nesse fim de tarde, a doença era uma lâmina afiada sobre as nossas cabeças. Os três sentados, o Paulo, a minha irmã e eu, na esplanada de um pequeno e manhoso café perto do hospital. Raso, o sol acentuava a fealdade do plástico da esplanada Sumol, mirrando as sandes que havíamos pedido. Lá dentro, conversas paradas de homens ao balcão, cascas de tremoços, copos com restos de espuma de cerveja. O Paulo mantinha-se calado, a minha irmã capitulava e recapitulava o que já sabíamos, vasculhava esperança, não fosse o silêncio engolir-nos. Eu, sem conseguir travá-la nem ajudá-la. Em mim, o medo é mudo. Este medo.
Sei exatamente a primeira vez que ouvi falar de cancro. Ainda tinha dificuldade em acompanhar a rapidez das legendas de Love Story, na matiné do cinema África, a que fui com a minha irmã. Não que ela me tivesse querido levar. Pelo contrário, fizera tudo para ir sozinha, qual é a adolescente que quer ser vista pelo seu grupo de amigos com uma irmã cinco anos mais nova? Ainda por cima de roupas iguais, mandadas fazer na costureira pela minha mãe. A minha irmã alta e magra, eu baixota e rechonchuda, ridiculamente vestidas com o mesmo modelo e tecido, um espalhafatoso conjunto de saia e colete vermelhos, camisa de folhos brancos. À saída do cinema, eu era a única das raparigas que não estava a chorar. Além de não ter ficado interessada na história de amor da Jenny e do Oliver, não percebera porque é que ela morria no final. Morrer era coisa de velhos ou resultado de acidentes de carro graves. Não sabia que existiam doenças que os médicos não conseguiam tratar, Porque é que ela morreu?, perguntei à minha irmã e às amigas. Cancro, atirou a Anita, quem apanha um tem meio ano de vida no máximo.
– Apanha-se como?
– Ninguém sabe. São caroços que aparecem pelo corpo e que não param de crescer.
Fiquei aterrorizada. Passei a vistoriar obsessivamente o meu corpo e a entrar em pânico com cada anomalia cutânea que me aparecia. Atormentava-me não poder fazer o mesmo em relação aos corpos do meu pai, da minha mãe, da minha irmã: e se, a qualquer momento, a contagem decrescente dos seis meses para a morte começasse? Felizmente, o cansaço derrotou-me. Seja! A exaustão faz-nos aceitar o inaceitável. Já que a morte é insidiosa, que chegue quando lhe apetecer.
Quase meio século depois, na esplanada do café manhoso, eu tentava desencravar a minha cabeça, seguindo os saltinhos de um pardal que escolhia migalhas do chão. Julguei ouvir o Paulo,
– Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes.
Afinal, ele continuava calado. Os olhos mais arredondados do que nunca.
– Vou a Fátima. Vais ficar bom, Paulo, e eu vou a Fátima,
disse sem perceber bem o que disse.
Sinto-me bem em Fátima. Quase tudo é feio, lá. E não apenas o que os olhos veem. O feio é o belo apressado. O tempo encarregar-se-á de corrigi-lo.
Tenho fé. A loucura solitária é triste, a coletiva é salvadora. E não há loucura maior do que a da lucidez omnisciente. Chamem-Lhe Deus ou outra coisa qualquer, as trincheiras da Ciência nunca O conquistarão. É-me mais simples chamar-Lhe Deus. Mais amoroso, também. Aprendi-O assim, e não quis gastar-me a procurá-Lo noutro sítio. Minto. Procuro-O também aqui. Nas palavras. No princípio era o verbo. Apagar tudo. Apagar-me. Regressar ao princípio. Escutá-Lo. Falar-Lhe. Imagino-O um gigante sentado num banquinho à minha espera.
Pouco tempo depois daquele fim de tarde, o Paulo começou a quimioterapia. Entretanto, não teve outro remédio senão perder o terror que tinha de ser picado por agulhas. O corpo dele foi cedendo, emagreceu, perdeu o cabelo, nauseou-se, cansou-se ao longo das sessões de quimioterapia, mas resistiu, resistiu, resistiu. Os médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares do Instituto Português Oncologia foram inexcedivelmente competentes. Viva o Serviço Nacional de Saúde!
Fui há poucos dias a Fátima. A minha irmã quis ir comigo. Desta vez, nenhuma de nós se teria importado se nos vestíssemos de igual. À noite, juntámo-nos à procissão das velas. Milhares de pessoas a entoarem cânticos. Cada peregrino carregava uma chama que se debatia, incapaz de se soltar do pavio. Quando o Santuário ficou em silêncio, a minha irmã e eu sentámo-nos na Capelinha das Aparições. O ar frio, vibrante, como se se fosse quebrar e…
No dia seguinte, no regresso, campos e campos amarelos a perder de vista.
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