2022 foi um ano médio-mal passado. Médio porque trouxe o fim de uma pandemia obscura, a retoma da vida e dos festivais, o regresso dos beijos e dos abraços. Mal porque a ansiada “normalidade” não chegou sequer a sol de pouca dura. A invasão da Ucrânia, que ninguém imaginava possível nestes termos, pôs fim à relativa paz na Europa e arrastou o mundo para uma nova crise monumental. Sem fim à vista. Seguimos a bordo de mais uma “crise sem precedentes”.
Em 2022, migrámos do clima emergencial das vacinas, dos confinamentos, dos ventiladores, para o clima emergencial da inflação, da crise energética, da ameaça nuclear. Pela terceira passagem de ano consecutiva, seguimos à deriva no leve sentimento de que, “quando isto acabar”, retomaremos a vida. Ao mesmo tempo, é nos períodos mais negros que a Humanidade se revela. No ano em que os números da Pordata e do Observatório Nacional da Luta contra a Pobreza expuseram o flagelo da fome em Portugal, no ano da inflação e da quebra do poder de compra, o Banco Alimentar bateu o recorde de voluntários. Já no ano passado, em plena crise pandémica, se bateu o recorde de donativos. A solidariedade lusa comove sempre. Mas não é exclusivo dos portugueses. Em 2022, as contribuições dos imigrantes para a Segurança Social voltaram a atingir um topo histórico: mais de 1200 milhões de euros. Boa parte do apoio a quem mais precisa é possível graças a eles. O trabalho, a esperança e a solidariedade insistem em brilhar nas trevas.
Nas vésperas da pandemia, prometi à minha avó que a levaria a uma casa de fados. Estávamos em 2019, éramos felizes e não sabíamos. A minha avó é uma senhora alegre e independente, que poderia bem ir para a noitada sem mim – importa esclarecer –, mas a ideia era irmos juntos, com o meu avô. Beber uma taça de vinho, ouvir chorar a guitarra e gritar “aaah, fadista!”. Só que a covid forçou-nos a adiar o plano para assim que as coisas voltassem ao normal. Quando, há dias, repescámos o assunto, percebi porque é que ainda não fomos: a normalidade ainda está por vir. O tal festejo louco e apoteótico que se prometia para marcar o fim da pandemia nunca chegou. À despedida de 2022, as máscaras e os boletins covid ficaram para trás, mas continuamos a viver num clima de medo e excecionalidade. Em 2023, é hora de substituir o medo pela consciência e pôr todos os planos em marcha.
Lembra-se de quando 2020 ganhou o título de annus horribilis? Mal sonhávamos nós. O calendário que agora se inicia promete continuar a estar à altura deste desígnio. Vai doer. A crise económica e as tensões internacionais, com a complexificação do xadrez global, permitem antecipar um ano duro, com carências, tumultos e contestação social. Um ano difícil para a estabilidade democrática, face ao canto das sereias do extremismo, para a coesão europeia, contra o “cada um por si” da gestão de crise, para a transição climática, para as políticas sociais, para os mais pobres. Um ano de luta, com laivos de esperança – do #forabolsonaro no Brasil à coragem revolucionária no Irão. À política, exige-se a competência, a coragem e a inteligência de enfrentar a tempestade protegendo os mais frágeis. A todos, cabe-nos honrar o que de mais humano temos: a união, a cooperação, a solidariedade. Cabe-nos celebrar, dentro do possível, e ganhar alento. Aqui estaremos para fintar a instabilidade com o sonho e as resoluções habituais: ler mais, ir correr três vezes por semana, levar as nossas avós aos fados. Pelo menos à última, não podemos falhar.
Feliz ano novo.
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