Nos últimos 50 anos ocorreu uma revolução silenciosa no tratamento das doenças mentais. A partir dos anos 60, a introdução de fármacos antipsicóticos (que controlam doenças como a esquizofrenia ou a psicose bipolar) e de antidepressivos (que tratam a depressão e a ansiedade) permitiu um avanço extraordinário no tratamento das principais doenças psiquiátricas, da qual decorreu uma redução substancial de camas psiquiátricas e a possibilidade de encerramento da maioria dos hospitais psiquiátricos. Por ironia do destino foram os psicofármacos tão criticados pela anti-psiquiatria o factor decisivo para o fim dos hospitais psiquiátricos pelo qual a anti-psiquiatria tanto lutou. A maioria dos doentes psiquiátricos graves deixou de ter necessidade de uma institucionalização permanente e começou a ser possível o tratamento ambulatório destes doentes na comunidade, assim como passou a ser possível a sua reabilitação e reinserção social.
Para além disso, e no que diz respeito às perturbações mentais consideradas menos graves, é agora possível um alívio substancial do sofrimento por elas causado e em muitos casos a cura com remissão total dos sintomas.
Se num primeiro tempo (sobretudo até à década de 90), os fármacos apresentavam efeitos adversos importantes que de certo modo até identificavam os doentes que os estavam a tomar, neste momento, até esse aspecto se encontra profundamente minimizado, sem perda de eficácia na acção dos novos fármacos.
Contudo, tal como em outras áreas da medicina os custos crescentes com o tratamento determinou, e bem, que os Estados-Governos financiadores procurassem reduzir drasticamente essa despesa.
Desse modo, através de uma regulação cada vez mais rigorosa, no patenteamento e seus prazos de validade mas, sobretudo, através de uma promoção activa de uma política de medicamentos genéricos e de uma redução acentuada das margens de lucro na distribuição e comercialização de medicamentos, os governos para já retomaram o controlo da despesa que financiam.
Todavia, como tudo na vida, uma medida que resolve um problema pode desencadear outros e, destes destaca-se desde logo a transformação da maioria dos medicamentos numa mercadoria (commodity) como qualquer outra, o que se traduz não só numa baixa acentuada de preço (muitos medicamentos custam muito menos por unidade que uma pastilha elástica), como na banalização do consumo dos fármacos.
Em segundo lugar, mantendo uma regulação apertada sobre todo o circuito do medicamento quer na segurança dos fármacos, quer nas regras de produção, distribuição, comercialização e comparticipação, as autoridades públicas conseguiram inverter as premissas que permitiram o agigantamento financeiro das grandes empresas da Indústria Farmacêutica, na medida em que um negócio com volume e grandes margens de lucro passou a ter somente volume. De facto, os medicamentos perdem hoje rapidamente a sua patente e os preços logo de seguida caem tão baixo, que considerando os riscos elevados do ponto de vista financeiro no seu desenvolvimento (particularmente nos psicofarmacos), este negócio deixou de ser interessante para as grandes multinacionais farmacêuticas.
Como mercadoria que é hoje, o medicamento limita-se a ser um produto de linha branca que cada vez mais pode ser distribuído e vendido na grande distribuição, o que aliás de forma crescente já vai acontecendo nos hipermercados.
Sendo agora um negócio pouco interessante para a indústria de inovação porque comportando riscos financeiros efectivos e estando ainda a indústria na posse de conhecimento e tecnologia, não é surpresa que esta mesma indústria se tenha voltado para outras áreas de negócio, nomeadamente os medicamentos de biotecnologia.
Estes constituem novos tratamentos inovadores, com alto nível de desenvolvimento tecnológico e orientados para doenças que outrora interessavam menos a Indústria (doenças virais, imunológicas, oncológicas) e só possíveis de serem disponibilizados a nível hospitalar. Contudo, têm um problema grave associado – são extremamente dispendiosos (vide o custo do tratamento da Hepatite C).
Por isso, aquilo que os Estados conseguiram poupar nos fármacos de farmácia está a ser pago com juros nos medicamentos de biotecnologia disponíveis a nível hospitalar. Por outro lado o elevado nível de incorporação tecnológica nestas modalidades de tratamentos não permitirá com facilidade a produção dos seus genéricos (ditos biossimilares) o que prolongará a vida destas substâncias a “preço premium” para além da data de perda da patente.
Considerando esta evolução podemos dizer que ainda estamos a ganhar, porque temos fármacos de saldo para as doenças e riscos de doença comuns (hipertensão, hipercolesterolémia, antibióticos, etc.) e passámos a ter substâncias eficazes em doenças anteriormente consideradas incuráveis. O que deixámos de pagar num lado permite ainda financiar no outro.
É neste ponto que começo a ter dúvidas sobre este assunto, porque inevitavelmente a biotecnologia irá gerar um progresso sem precedentes quer no controlo das doenças quer no prolongamento da vida de forma significativa mas, a custos que serão incomportáveis para os Estados.
Nessa altura, os Estados que não poderão pagar tudo a todos terão que decidir a que níveis subsidiarão tratamentos e fórmulas de prolongamento de vida. A partir desse nível só quem tiver dinheiro poderá pagar certos tratamentos e alguma eternidade. Certamente duas classes de pessoas irão emergir: a maioria que terá direito aos tratamentos comuns e uma minoria que poderá pagar certos tratamentos e comprar anos de vida para além dos limites. Nada disto é diferente afinal do que acontece hoje na maioria dos sectores da vida, desde a alimentação, aos automóveis, ou às condições de residência. A diferença está que hoje o acesso ao melhor tratamento é igualitário (salvaguardando situações de conforto de instalações) e no futuro não será assim, pelo que os sistemas de saúde que hoje permitem coesão social não o poderão fazer no futuro.
Olhando para todo este fenómeno e percebendo esta evolução como uma hipótese não deixo de me questionar sobre o que podemos fazer agora para evitar este caminho de “Admirável Mundo Novo”.
Não tenho uma resposta para esta questão mas não deixo de pensar que todos nós deveremos reflectir sobre isto para que em conjunto possamos definir o trajecto que iremos querer percorrer.
Para a psiquiatria não tenho dúvidas que a biotecnologia chegará mais tarde. Por enquanto a inovação parou. Se isso é bom ou mau veremos.