Em 1998, publiquei uma reportagem na VISÃO sobre um curandeiro dos Açores que dizia tratar o cancro recorrendo a um tratamento inventado por si. O ingrediente principal desse “remédio” era um herbicida, que usava num unguento que colocava na pele dos doentes e numa água que aconselhava a beber.
Nas semanas em que estive nas ilhas, seguindo as consultas que ele ia dando a centenas de pessoas, que faziam fila desde madrugada para serem recebidas, contabilizei 28 mortes entre os seus “pacientes”. Vi meninas adolescentes ficarem sem os mamilos, cortados sem dó com pedaços afiados de paus e canas, entrevistei mulheres convictas de que o frasco de formol com um pedaço de carne arrancado ao peito que exibiam no móvel da sala era, de facto, um cancro extirpado pelo curandeiro.
O herbicida que o açoriano utilizava tinha o paraquat como princípio ativo (vendido comercialmente como Gramoxone) e um simples golo, mesmo que cuspido de imediato, provocava morte certa. A inalação das suas moléculas, ao ser pulverizado, revelava-se também no maior nível de toxicidade previsto, provocando cancro e várias patologias no coração ou pulmões, por exemplo. Ainda assim, este era um produto de venda livre em qualquer drogaria do país.
Os pacientes do curandeiro do Pico surgiram, em poucas semanas, com sintomas do que os médicos me explicaram ser uma “corticite pulmonar”. Por ação deste herbicida, os pulmões ganhavam um aspeto de cortiça, perdendo a capacidade de se expandirem. Quando chegavam às urgências, já nada havia a fazer, além de se tentar atenuar o horror das últimas horas destes pacientes.
Depois da reportagem publicada na VISÃO, o Ministério Público abriu um inquérito e, dois anos depois, o curandeiro foi condenado a 12 anos de prisão por 28 crimes de ofensa à integridade física grave, quatro dos quais agravados pela morte dos pacientes (nos restantes casos não foi possível, por vários motivos, provar a relação causa-efeito dos tratamentos prescritos e a morte).
O paraquat, que já era proibido na Suécia desde 1983, foi banido na União Europeia há 5 anos. Causava demasiados problemas de saúde e era uma “arma” demasiado acessível para poder continuar a circular livremente. E, afinal, existiam outras alternativas para dar luta às ervas daninhas…
Um dos herbicidas que continuou a ser comercializado – e é atualmente o mais usado em Portugal – está agora debaixo de fogo. O glifosato, produzido por empresas como a Monsanto ou a Bayer, entrou no ano passado na lista das substâncias “potencialmente cancerígenas” da Organização Mundial de Saúde e, uma vez que a licença da sua comercialização na União Europeia expira a 30 de junho, vários movimentos ambientalistas internacionais têm feito pressão para que seja banido de vez. Por cá, a Quercus vem alertando para os “vários estudos que o relacionam com o desenvolvimento de linfoma não Hodgkin (um tipo de cancro), hipertiroidismo e malformações nos fetos”, assim como as “repercussões a nível ambiental”, uma vez que “a sua degradação é muito lenta”.
Há ainda quem levante dúvidas sobre a real toxicidade do glifosato e quem recorde que na lista dos produtos “potencialmente cancerígenos” da Organização Mundial de Saúde também está a carne vermelha, por exemplo. A diferença, contudo, é que cada cidadão pode decidir comer ou não determinados produtos (ou fumar, ou beber), mas não tem uma palavra a dizer sobre a utilização deste químico nos legumes que comemos ou nos relvados dos parques e jardins onde brincamos com as nossas crianças.
A Agência Europeia para a Segurança Alimentar juntou mais dados ao debate, defendendo que o potencial carcinogénico deste herbicida não está ligado ao glifosato mas a um coformulante (taloamina), usado em vários produtos fitofarmacêuticos.
O debate segue aceso pela Europa e alguns países avançaram já com restrições ao seu uso, sem quererem ficar dependentes de uma posição concertada da UE. Em França, por exemplo, foram proibidos, na semana passada, todos os herbicidas que juntam precisamente o glifosato e a taloamina.
Com tanta polémica, a Comissão Europeia, que se propunha renovar a licença de comercialização do glifosato até 2031, acabou por dar ouvidos ao comité de especialistas de todos os países-membros que analisou o assunto e propõe diminuir o prazo de licenciamento e criar condicionamentos ao seu uso.
Esta semana, o Parlamento Europeu votou pela autorização deste herbicida na agricultura por mais sete anos mas quer ver o seu uso proibido, desde já, em todos os espaços públicos urbanos. A 18 e 19 de maio haverá nova reunião do comité de peritos e a decisão final competirá à Comissão Europeia, que anunciará a sua posição em junho, depois de ouvidos todos os ministros da agricultura dos países-membros.
E qual é a posição de Portugal? Na passada sexta-feira, 15, foram a votação no Parlamento três projetos do PAN, Bloco de Esquerda e Os Verdes, recomendando a proibição do glifosato no nosso país e a oposição do governo à renovação da sua licença na União Europeia. Mas acabaram derrotados pelos votos contra do PSD, CDS e a abstenção do PS e PCP. O governo manifestou já a intenção de aprovar a comercialização do herbicida por mais alguns anos.
Podem não existir ainda certezas absolutas sobre a perigosidade deste herbicida mas, na dúvida, fechamos os olhos ou abrimo-los?
Uma sondagem revelada pelo jornal britânico The Guardian, indica que dois terços dos alemães, britânicos, italianos e franceses querem ver banido o glifosato do mercado europeu. Ao contrário do que se passa em vários países da Europa, este não tem sido um assunto debatido pelos portugueses. E é de lamentar. A ganância dos que beneficiam com a comercialização deste e de outros produtos que podem prejudicar a saúde pública alimenta-se precisamente da nossa ignorância.