Há 166 anos, completaram-se no dia 29 do passado mês de março, na ainda hoje perigosíssima barra da foz do rio Douro, naufragou o vapor “Porto”. No desastre morreram 66 pessoas – 37 passageiros e 29 tripulantes. Depois da catástrofe da Ponta das Barcas (1809), durante a segunda invasão francesa, foi a tragédia de mais calamitosas consequências ocorrida nesta cidade.
Apesar do mau tempo que se fazia sentir (nevoeiro intenso, vento forte e uma perturbadora agitação do mar) o navio lá saiu do cais da Estiva, no rio Douro, barra fora, com destino a Lisboa. Era o dia 28 de Maio de 1852. Entardecia.
Naquele tempo este era o mais seguro e o mais cómodo meio de ligação entre o Porto e Lisboa. Salvaguardadas as devidas proporções, da distância, no tempo; e do tipo de meios disponíveis, numa e noutra época, aquela ligação, embora marítima, correspondia, se assim se pode dizer, à ponte aérea dos nossos dias, normalmente utilizada por políticos, gente da banca, empresários, gestores.
Horas depois da saída do navio pela barra do Douro, já no alto mar, por alturas da Figueira da Foz, o tempo começou a piorar e o “Porto”, que não era novo, começou a balouçar, perigosamente, na crista das ondas de um mar encapelado, enquanto, assustadoramente, se ouviam ranger, as suas velhas e cansadas estruturas de ferro. Nessa altura o comandante do barco, o experiente marinheiro, António Pinto, cedeu aos rogos dos passageiros que, transidos de medo, lhe “impuseram” o regresso ao ponto da partida. E assim aconteceu. Era já noite cerrada.
Foi só já na manhã do dia seguinte (29) que o vapor chegou, finalmente, em frente à entrada da foz do Douro. O mar permanecia agitado. Demandar o rio não ia ser fácil. Durante algum tempo o barco pairou ao largo, aguardando que no mastro do castelo de S. João da Foz do Douro fosse içado o sinal que autorizava a passagem da barra. Logo que isso aconteceu o “Porto“ tomou o enfiamento do rio mas, no momento em que parecia que o perigo maior havia sido ultrapassado, um repentino vagalhão levantou o barco e atirou- o (é o termo exato) para cima de uma das muitas pedras existentes à entrada da barra a que davam o nome de “ Forcada “. E nunca mais de lá saiu.
De bordo os passageiros faziam-se ouvir em terra. O banqueiro José Allen oferecia toda a sua fortuna a quem salvasse as duas filhas que estavam com ele. À medida que as horas passavam, aumentava o perigo de o barco se desintegrar. De terra os esforços que se faziam no sentido de lançar cabos para bordo eram infrutíferos porque a agitação do mar não permitia que os pequenos botes e aproximassem do “Porto“.
A bordo estava também António José Plácido Braga, pai da Ana Plácido e de Antónia Cândida Plácido Vieira. A primeira, depois de ter saído do lar, em 1859, abandonando o marido, o rico comerciante portuense, Manuel Pinheiro Alves, vivia, desde então, com o romancista Camilo Castelo Branco. A segunda casara, havia pouco tempo, com António Bernardo Ferreira, filho de D. Antónia Adelaide Ferreira, a célebre “ Ferreirinha” da Régua. Mas este casamento realizou-se contra a vontade da “Ferreirinha“ que andava a tentar anula-lo. Nesse propósito já havia conseguido que o bispo da diocese suspendesse o pároco de Nossa Senhora da Vitória, padre António de Sousa que, naquela paróquia, unira canonicamente os dois apaixonados.
A presença de António José Plácido Braga no vapor “ Porto” tinha uma explicação: ele ia a Lisboa tentar, junto do cardeal, que o casamento da filha com António Bernardo Ferreira se mantivesse válido. Essa era, afinal, a vontade dos noivos.
António Plácido Braga acabou por morrer no naufrágio. Um jornal da época, o “ Nacional “ publicou, junto à reportagem do trágico acontecimento, um caixilho com uma mensagem dirigida, naturalmente, à “Ferreirinha”, embora sem citar nomes, apelando à concórdia. E o casamento manteve-se, como é do conhecimento geral.
Entre os que pereceram no naufrágio estava, também, José Augusto da Silveira Pinto, um grande amigo de Camilo que o evocou num sentido soneto que publicou no dia a seguir à catástrofe nas colunas do “Nacional“. O romancista voltou a evocar o amigo noutra ocasião, num artigo a que deu este sugestivo título: “Orai pela sua alma“. Mas nunca fez a mais leve referência a qualquer outro náufrago. Nem a António José Plácido Braga, o pai de Ana Plácido, a “ mulher fatal” do romancista desde, pelo menos, 1850. Estranho!