Dantes, neste mês, eu estava na Praia das Maçãs com a minha mãe e os meus irmãos. Primeiro numa pensão, depois em casas alugadas, depois naquela que os meus pais compraram. A bandeira na areia muitas vezes vermelha, muitas vezes amarela, quase nunca verde, o tempo, com frequência, húmido e frio, não me recordo de um verão em que não chovesse, a minha mãe argumentava
– Depois da uma levanta
e a gente a tiritar na barraca. Não tínhamos bicicletas por falta de dinheiro e, na época da pensão, a minha mãe e nós ocupávamos dois quartos, um para ela e outro para a gente. O meu pai chegava ao sábado e ia-se embora logo que podia, ao domingo, num Renault pequenino. Não me lembro de o ver sem camisola. O mar não se calava toda a noite e aborrecíamo–nos de morte, acompanhados de uma empregada que não sei onde dormia, mistério que me acompanha ainda. À tarde voltávamos à areia, de camisola também, onde a empregada fazia sucesso entre os banheiros. Embora variasse de destinatário a frase dela para os ditos era sempre a mesma
– Nem pense
que, na altura, constituía um mistério para mim: nem pense em quê? Reflectindo melhor continua a ser um mistério para mim. Estou a vê-los de pé, encostados ao pau da barraca, de cigarrinho escondido na mão: de tempos a tempos chupavam a palma e deitavam fumo. Quando passámos para as casas alugadas via-os à noite, do outro lado do muro, a patrulharem as redondezas com lentidão e esperança, consoante vejo a empregada na porta da cozinha, no seu
– Nem pense
inamovível. Existiam também uns habitantes locais, de motorizadas velhas, a tentarem a sorte, com um dos pés no chão e o resto do corpo a acelerarem aquelas máquinas decrépitas, todos com o seu
– Nem pense
por companhia até que, no meio deste bando de desprezados, surgiu o Má Cara que, apesar de feio e baixinho, possuía um poder de sedução sem igual. Pelo Má Cara vinham ao muro, ao Má Cara consentiam que pensasse. O Má Cara era o homem com mais sucessos femininos que conheci em toda a vida. Normalmente os muros possuíam uns buxos aqui e ali, atrás dos quais ele parava a caranguejola depois de umas aceleradelas de aviso, as empregadas, na porta da cozinha, mediam as redondezas e acabavam por trotar, de casaco pelos ombros, puxadas pelos seus encantos secretos, até ao outro lado dos buxos, que davam em remexer mais do que o costume sem que, no escuro, eu percebesse o que se passava. Aliás havia um candeeiro por perto, na rua, mas o Má Cara, engenhoso, quebrou-lhe a lâmpada com uma pedra certeira e um véu de trevas cobria-lhe os manejos. No fim das operações que agitavam os buxos as empregadas voltavam para casa a trote, corrigindo os ganchos do penteado, e o Má Cara acelerava a motocicleta rua abaixo numa barulheira triunfal. O Má Cara, que eu via às vezes, durante a tarde, à entrada do café, solitário, carrancudo, foi o herói da minha infância. De certo modo continua a ser o meu herói, mesmo quando o reencontrei muitos anos depois, amarrecado, de cabelos brancos, com um copinho a tremer-lhe na mão, ao que parece ainda atractivo, fatal. Nunca soube em que é que trabalhava, penso que o emprego dele era trazer alegria e alma às empregadas da minha mãe. Não entendo exatamente como porque o Má Cara não falava. Mesmo no café, se conversavam com ele, um silêncio opaco. Quando muito um breve sinal de cabeça a concordar, imperceptível, que os outros recebiam com submissão e respeito, e ele sublinhava por intermédio de um bagaço viril que, a mim, me fazia tossir uma hora e, a ele, o deixava impávido, unicamente um bocadinho mais vermelho, aumentando-lhe, de passagem, a tremenda virilidade dos gestos. Então avançava um passo no sentido da motorizada, que trabalhava por milagre, cuspindo parafusos e fumo, e seguia, ajeitando a melena, na direção do próximo arbusto, no muro do quintal de uma casa qualquer, onde uma empregada frenética de entusiasmo, o aguardava. Não me custa pensar que não uma empregada apenas: todas as empregadas das vivendecas da Praia das Maçãs a estremecerem, em uníssono, de expectativa e paixão, enquanto os arbustos engordavam na esperança de acolherem o Má Cara lá dentro.