<#comment comment=”[if gte mso 9]> Normal 0 21 false false false PT X-NONE X-NONE MicrosoftInternetExplorer4 Da janela vejo o minimercado dos nepaleses, tão simpáticos, tão doces, com caixotes de fruta e botijas de gás na rua. Vieram de Katmandu e estabeleceram–se nesta loja de pobres, numa esquina pobre de uma rua pobre, miudinhos, calmos, delicados, de uma simpatia que me enternece sempre. Têm sorrisos tão bonitos. Vivem com muito pouco e nunca se queixam, são, de certeza, muito difíceis para eles os fins do mês, e atravessam-nos com uma dignidade exemplar e um cachecol do Benfica na parede. Aquilo tudo tem um aspecto pouco limpo, não cheira especialmente bem, há muita coisa barata e talvez inútil amontoada ao acaso mas gosto de mudar de passeio e entrar lá dentro para que me falem do Evereste. Faço-lhes dúzias de perguntas, respondem invariavelmente sem se aborrecerem, numa paciência infindável. Sem nunca lá ter estado, claro, quase me oriento sozinho nas ruas de Katmandu, daqui a uns tempos conheço a cidade inteira. Não perguntam seja o que for em troca. Ainda não me atrevi a apertar-lhes a mão, ainda não me sinto digno disso. Olham-me nos olhos sempre, vão-me explicando o Nepal, e gosto da comida deles, da sua leveza, da sua atenção, da harmoniosa elegância dos gestos. Se calhar acham-me um homem estranho, um intrometido, mas nunca me censuram nem parecem aborrecidos. Aliás é impossível para mim perceber no que estão a pensar. A loja à direita, também pequenina, também humilde, pertence ao cunhado de um deles, que costuma estar na rua a olhar para dentro. Vir para fora no intuito de olhar para dentro encanta-me, é esse, um pouco, o meu trabalho. O cunhado usa um chapéu esquisito, parecido com uma chaminé curta, que lhe cobre a cabeça numa exactidão de cápsula, com desenhos ao mesmo tempo complicados e simples. Pela maneira como se adaptam um ao outro, o chapéu e o crânio, imagino que já nasceu com ele e foram crescendo juntos. Tem um anel de prata trabalhada
(para mim é prata mas talvez seja de metal barato)
com o qual deve ter nascido igualmente. À noite somem-se todos numa pontinha minúscula, em passitos mansos. Como é que se sonhará ao pé do Evereste? Isso tão pouco me atrevo a perguntar. De resto se eu não perguntar nada fitam-me a sorrir, numa lentidão cheia de eternidade. Falo-lhes no Sherpa Ten-Sing, a primeira pessoa a subir o Evereste, juntamente com Sir Edmond Hillary e, após uma pausa infinita, eles
– Ten-Sing
numa ligeira curvatura respeitosa. Só o conheço de fotografias antigas mas gostava de vê-lo para o admirar à vontade. Pergunto
– E de Katmandu vê-se o Evereste?
eles em coro, como perante uma evidência
– Vê-se o Evereste.
O que eu não dava para trepar o Evereste, chegar lá cima, tocar no céu. Riem-se
– Tocar no céu
olhando para mim como se olha uma criança. Falam na língua deles, até aquele com quem tenho mais intimidade segredar
– Ten-Sing está em toda a parte.
Experimento:
– Mesmo aqui?
e ele, após uma pausa longa
– Mesmo aqui
a trocar uma maçã de sítio, o que significa que a conversa acabou. Despeço-me
– Até amanhã
respondem
– Até amanhã
na paz de sempre, e mudo de passeio quando o sinal fica verde para os peões, comigo e um velhote enrugado à espera. Só no outro lado, ao vê-lo afastar-se, compreendo quem é. Chamo
– Sherpa Ten-Sing
digo, mais alto
– Como é o céu Sherpa Ten-Sing?
insisto
– Pode entrar-se lá dentro?
e só então reparo, triste, que ele desapareceu para sempre. Fico com a esperança de logo, quando adormecer, o encontrar sentado no pico mais alto da montanha, à minha espera:
– Ainda queres tocar no céu, tu?
E talvez, cá em baixo, vocês nos vejam aos dois, o Sherpa Ten-Sing e eu, de dedinho no ar.
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