Por estes dias, um fragmento do tempo aparece em várias publicações e nas redes sociais. Numa carruagem de metro, em Buenos Aires, um sacerdote católico, reconhecível, como tal, pela roupa negra e o cabeção, interpela-nos com um olhar sereno, pacífico, levemente interrogativo, como se nos estivesse a perguntar: “E tu? Já fizeste alguma coisa, hoje, que mereça ser recordada?” Sentado num dos bancos da carruagem, o prelado segue, anónimo, entre outros passageiros. A carruagem vai quase cheia, mas, além do padre, apenas mais cinco pessoas, quatro homens e uma mulher, poderiam ser imediatamente identificadas pelos rostos, bem visíveis, fotografados praticamente de frente. O clérigo sentado e um homem que viaja de pé, em segundo plano, e que usa boné, são os únicos que olham para a objetiva. A foto parece uma pintura, lembra os jogos de luz e sombras ao estilo de Velázquez (As Meninas? A Refeição?), e, se fosse, bem poderia estar emoldurada numa das paredes mais nobres de qualquer museu do mundo ou no Vaticano (ver pág. 42, neste caso, em versão a preto-e-branco). Poderíamos dar-lhe um nome provisório: A Carruagem. Ou O Passageiro.
A foto é uma metáfora da vida de Jorge Bergoglio. Misturado na multidão, em hora de ponta, ele vai daqui para ali. Um viajante que segue junto dos simples, talvez tenha tirado passe, é visto como um igual. Ninguém mostra especial deferência, mas todos o reconhecem, pelo seu mediatismo. Estão habituados à sua presença. O arcebispo de Buenos Aires terá de mostrar o título de transporte a qualquer revisor, ou ultrapassar as cancelas da estação depois de encostar o bilhete ao sensor que as abre. A foto é de 2008, apenas cinco anos antes de ser eleito Papa. Jorge ainda não é Francisco, mas ninguém o obrigará a largar a simplicidade do santo de Assis. Nenhum daqueles passageiros lhe agradece o que já fez naquele dia, nos dias e nos anos anteriores, que mereça ser recordado. Entre os outros é um deles. Tudo corre naturalmente, como o Sol que nasce e se põe, nas várias longitudes deste mundo de Cristo.
Já hoje temos a noção. Aliás, tivemos a noção desde o primeiro dia: Francisco é um corte, uma rutura, uma trepidação telúrica que não vai deixar nada como era antes. Tivemos Sumos Pontífices dos mais variados perfis. Estes foram apenas católicos, aqueles foram burocratas, muitos foram administradores, outros grandes estadistas. Alguns, genuinamente bondosos e preocupados com o próximo. Outros, políticos argutos ou personalidades influentes. Houve pecadores corrosivos, dissolutos e tóxicos, mas também houve santos. Francisco será recordado como o primeiro Papa cristão dos últimos mil anos. Disso, talvez não tenhamos a noção.
Francisco não aspirava à santidade, essa que os critérios terrenos definem como a dos impolutos. Não escondia as suas fraquezas. Era Papa, era pecador e procurava melhorar. A sua principal característica era a da identificação imediata, a empatia radical, o carisma inexplicável. E, num mundo dominado pela comunicação de massas, a telegenia triunfante. Era humano, em vez de santo. E, sim, era um político arguto, influente e, se preciso fosse, calculista, pragmático e implacável, na recomposição do xadrez de poder no interior da instituição. A força da Igreja, onde não existe democracia, é o seu paradoxal pluralismo. Jogando com isso, soube sempre mover as peças, entre rasgares de vestes, rangeres de dentes e missas em latim.
Com efeito, uma certa igreja conservadora, ultramontana, viúva do reacionarismo de João Paulo II – mas também da sua santidade sobre-humana – ou da exegese conservadora de Bento XVI, que não percebe que Francisco era o seu único verdadeiro ativo, nunca lhe perdoou. Nunca lhe perdoou a agitação. Nunca lhe perdoou a heresia. Nunca lhe perdoou a simplicidade, quase exibicionista. Nunca lhe perdoou a piedade (por exemplo, para com homossexuais ou divorciados que tornaram a casar). Nunca lhe perdoou o diálogo ecuménico ou o desprezo pelos ritos vazios. Nunca lhe perdoou os sapatos não vermelhos nem a mudança para a Casa de Santa Marta. Talvez não lhe perdoe o testamento para que possa ter um funeral comum.
Hipócritas de várias latitudes vertem, agora, lágrimas de crocodilo, tentando aproveitar de forma “abutreana” a onda de comoção provocada pela sua morte. Entre nós, o “católico convicto” André Ventura prestou-lhe a sua homenagem, depois de, como Pedro, “três vezes o ter negado”. Ressalvou que nem sempre concordou com Francisco, como se um “católico convicto”, para quem a infalibilidade do Papa é inquestionável, pudesse, sequer, discordar. Uns e outros, os seguidores, os críticos ou os convertidos de última hora perderam um ente querido. O mundo perdeu um amigo. Nós perdemos um amigo.
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