Esta semana, numa estação de rádio, a antiga presidente do PSD Manuela Ferreira Leite afirmou que, praticamente, foi a comunicação social que “fabricou” a mais do que certa candidatura presidencial do almirante Henrique de Gouveia e Melo. Para a antiga ministra da Educação de Cavaco Silva, e das Finanças de Durão Barroso, apoiante de Luís Marques Mendes – o único concorrente às presidenciais de 2026 que já formalizou uma candidatura –, a imprensa “tem feito as despesas da campanha do almirante, sem que ele tenha tido a necessidade, até agora, de gastar um único cêntimo”. Manuela Ferreira Leite terá um fundo de razão, mas esta história é um pouco como a parábola da galinha e do ovo: não se sabe bem se foi a imprensa que começou a “dar-lhe ideias”, lançando, primeiro, o nome de Henrique Goveia e Melo como um possível candidato presidencial, depois da estrondosa popularidade granjeada por este (antes, ilustre desconhecido) oficial da Armada, no âmbito da sua missão de diretor do plano de vacinação contra a Covid-19, ou se foi Gouveia e Melo (ou alguém por ele) a plantar, através de mão amiga, na comunicação social a sementinha da possível candidatura.
Ao ponto a que chegámos, Gouveia e Melo já não esconde o óbvio – ele vai mesmo candidatar-se, só não se sabe quando. Mas o seu ridículo tabu, que não resiste às contínuas aparições em conferências públicas feitas à sua medida, nem às abundantes declarações verbais e escritas que vai produzindo, tentando construir uma gravitas política, e esta fingida hesitação indicam uma dose de dissimulação que não se esperava de um perfil “pão, pão, queijo, queijo” que ele próprio se empenhou em construir. Mais, as suas declarações genéricas e redondas, que podiam ser subscritas, também genérica e redondamente, por qualquer cidadão com bom senso, fazem de um homem que se esperava disruptivo alguém a quem os brasileiros chamariam um “político chuchu” – não tem um sabor definido ou, melhor ainda, não sabe a nada. Essa prudência, que pode parecer excessiva mas que é apenas um “programa de manutenção”, a melhor forma de se manter em alta nas sondagens evitando “espalhar-se ao comprido”, responde à sua única preocupação do momento: conquistar o não despiciendo universo do comentariado nacional. Gouveia e Melo tem a perfeita noção de que a sua condição de paraquedista político e, sobretudo, de militarão encartado, suscita a desconfiança “bem-pensante” dos chamados opinion makers. E está bastante preocupado com os estragos que uma possível campanha dos comentadores contra ele ainda podem provocar. Não que isso o desfavoreça eleitoralmente – em boa verdade, o eleitor comum está-se nas tintas para o que dizem os comentadores –, mas porque Gouveia e Melo, que se tem na conta de uma pessoa culta e, vá lá, intelectual, deseja, além dos votos do povo, o reconhecimento das elites. A sua moderação, laboriosa e cuidadosamente fabricada, tem em vista, precisamente, o desiderato da “aceitação”. O escolho principal que ele deseja dobrar é, portanto, o do preconceito.
E a exploração do preconceito não leva a lado nenhum os eventuais adversários que venham a contestá-lo pelo alegado arrivismo político ou pela sua condição de possível “insuportável disciplinador”, ou de “populista-centrista” e antipartidos. Porque a condição de militar na reserva em nada diminui as suas competências cívicas. As suas críticas moderadas a uma certa forma de fazer política têm sido pertinentes. E a sua condição de militar não constitui um capitis diminutio. Por outro lado, a falta de experiência política também não o incapacita. Foi para isso que se fizeram os regimes republicanos: qualquer um, se reconhecido e eleito pelos seus pares, pode chegar a Presidente da República. Não se é Presidente: está-se Presidente. O sistema de castas, ou o monopólio de cargos políticos apenas exercido por um grupo de cidadãos – neste caso, os que têm a tão “preciosa experiência política” – corresponde ao regime das monarquias absolutas, em que apenas os nobres podiam desempenhar esse tipo de funções – e, já agora, também as de oficiais dos exércitos e das marinhas… Tentar combater Gouveia e Melo com esses argumentos é uma confissão de derrota. O almirante tem de ser chamado, isso sim, à liça da discussão política, do esclarecimento sobre o seu programa, do debate leal e do contraditório democrático. Talvez para tentar adiar esse confronto o mais possível é que ainda não formalizou a sua candidatura. Caso contrário, estaria à espera de quê?
Golpe de vista
A xenofobia é sempre rasca
Regresso a um acontecimento já requentado, mas para refletir sobre os pequenos nadas que podem definir um preconceito: à vitória da Seleção portuguesa sobre a sua congénere da Dinamarca, para a Liga das Nações. Se o selecionador fosse Rúben Amorim (ou Sérgio Conceição), o treinador teria “mexido muito bem na equipa” e feito “as substituições certas, na hora certa”. Mas como o selecionador se chama Roberto Martínez, “o Trincão salvou o espanhol”.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Moda Sócrates primavera/verão