No início da semana, o senador Bernie Sanders ligou o telefone e gravou um apelo desesperado, no seu gabinete. Tinha acabado de votar contra uma lei que dá mais poder à Casa Branca na gestão de fundos federais. “Esta lei empurra o nosso país para o autoritarismo”, diz Sanders, explicando que a nova legislação “faz cortes massivos a programas de apoio à habitação, cuidados de saúde e alimentação, põe em risco o funcionamento da administração da Segurança Social e continua o ataque da Administração Trump contra os veteranos; esta lei fará os ricos mais ricos e os pobres mais pobres”.
Para que esta lei passasse, os republicanos precisavam de ter sete votos de democratas no Senado. Tiveram dez. “A crise económica e política não será resolvida aqui em Washington DC. O sistema é demasiado corrupto”, afirma Sanders, explicando como se compram os votos e se distorce a democracia.
O vídeo que me apareceu no Instagram tem um tom alarmista. Talvez a alguns soe conspirativo. Mas estava a escrever este texto quando me deparei com uma notícia do The New York Times que revela como Elon Musk está a financiar nos limites máximos permitidos por lei os congressistas que apoiem o impeachment de juízes que se oponham a decisões do Presidente.
Continuo a olhar para o telefone e aparece-me o vídeo que regista o momento exato em que é detido um preso político nos Estados Unidos. A expressão é forte, mas talvez pareça adequada quando vemos a audição do embaixador indicado por Trump para o Canadá. Ao ser confrontado com uma pergunta do senador Jeff Merkley sobre se um cidadão americano deve poder expressar uma opinião contrária à do primeiro-ministro canadiano sobre política externa, sem perceber onde se está a meter, responde que “sim, esse é um valor americano”. Quando Merkley o confronta com a situação de Mahamoud Khalil, a contradição é já demasiado flagrante.
Mahmoud Khalil voltava de um jantar com a mulher, grávida de oito meses. À sua espera estavam quatro homens com roupas à civil. Apesar de não mostrar quaisquer sinais de resistência, foi algemado com as mãos atrás das costas. A mulher, que filmou tudo, telefonou para a advogada, que lhe foi transmitindo as perguntas que devia fazer. Quem eram aqueles homens? Para que agência trabalhavam? Para onde iam levar o seu marido? Os homens limitam-se a dar uma morada. Não respondem a mais nada e, a certa altura, começam a correr pela rua até se enfiarem num carro. Parece um rapto. Mas não é: Mahmoud Khalil foi levado para uma prisão no Louisiana, a cerca de quatro horas de voo de distância da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde foi detido. O crime deste estudante é ter participado em protestos pró-Palestina.
A conta oficial da Casa Branca no Instagram parece agora a parede de uma taberna de um filme de cowboys, cheia de imagens de presos, com as caras sobre um fundo laranja e negro, onde se leem os crimes de que são acusados, o lugar e a data de detenção. Há também uma fotografia de uma mulher, Rasha Alawieh, uma médica especializada em transplantes, que foi deportada, apesar de estar legal nos Estados Unidos, depois de ter sido acusada de ter viajado para Beirute para assistir ao funeral de um membro do Hezbollah. “Bye-bye, Rasha”, lê-se na legenda do post ilustrado com uma imagem de Donald Trump a dizer adeus da janela do que parece ser um posto de atendimento drive-thru de uma cadeia de fast food.
Scroll para baixo. A mesma conta mostra prisioneiros tatuados, algemados com correntes, a serem encaminhados para um avião, numa pista de aeroporto, ao pôr do sol. A banda sonora é uma música pop rock que estava nos tops no final dos anos 90 e ajuda a adocicar as imagens. Mas a mensagem é sublinhada por uma parte da letra que a Casa Branca destacou em legenda. “Closing time, you don’t have to go home/But you can’t stay here”.
As imagens ilustram a notícia dos cerca de 200 homens latinos que foram detidos e deportados esta semana dos Estados Unidos para uma das mais violentas prisões do mundo, em El Salvador, onde, segundo o The Guardian, não há recreio ao ar livre e não são permitidas visitas, há relatos de tortura e cada preso tem o equivalente a 0,60 metros quadrados. Segundo o The New York Times, não há dados que permitam perceber quantos destes homens pertenciam efetivamente a gangues, como foi alegado pela Casa Branca, ou que tipo de ameaça representavam, uma vez que foi admitido pelas autoridades americanas que vários deles não tinham sequer sido alvo de qualquer condenação.
Há imagens que mostram estes homens de macacão, algemados, com agentes a raparem-lhes a cabeça antes de serem enviados para El Salvador, que vai receber milhões de dólares para os encarcerar. Mariyin Araujo, que tem uma filha com seis anos e outra com dois, diz que só percebeu que o marido já estava na prisão salvadorenha depois de ver uma fotografia nas redes sociais. Era um venezuelano, que tinha fugido depois de ter sido perseguido pelo regime de Nicolas Maduro, e, por ser treinador de futebol, tinha uma tatuagem com uma bola e uma coroa num braço, um sinal que foi visto pelas autoridades americanas como a prova da ligação a um gangue da Venezuela. Mariyin não consegue sequer confirmar se o marido está em El Salvador.
“Se alguma vez houve um momento em que pessoas comuns, na base da pirâmide, se têm de organizar e lutar, este é esse tempo. Este é o momento de reclamar a nossa democracia (…) Porque esta é a verdade: a vasta maioria dos norte-americanos, democratas, republicanos e independentes não querem ver o Congresso a aliviar os impostos dos bilionários e a cortar nos programas de que as famílias trabalhadoras e desfavorecidas precisam”, diz Bernie Sanders no seu vídeo, pedindo a cada americano que se envolva diretamente em ações políticas e se organize na sua comunidade.
O meu telefone está cheio de notícias sobre como as autoridades alemãs reprimem violentamente manifestações contra o genocídio em Gaza. Leio histórias sobre jovens ativistas presos no Reino Unido por se envolverem em protestos de ação direta não violenta pelos direitos climáticos ou a favor da Palestina, ao abrigo de leis antiterroristas que permitem fechá-los em prisões de alta segurança durante um ano antes de irem a julgamento. Um cientista francês foi expulso dos EUA por ter mensagens anti-Trump no telefone. E, em Londres, o trabalhista Keir Starmer anuncia um corte de 5 mil milhões de libras em programas sociais, incluindo de apoio a deficientes, deixando sem resposta o deputado do próprio partido que lhe pergunta por que não põe ele os ricos a pagar uma taxa sobre a sua fortuna.
“Nós somos a maioria, eles são o 1%”, diz Sanders. Enquanto assisto à queda dos princípios de igualdade perante a lei, justiça e liberdades individuais no prometido oásis das democracias ocidentais, a ideia de Sanders parece a única esperança possível. “Nós somos a maioria, eles são o 1%”.