Estamos perante um claro aumento de casos de cancro, a nível mundial. Em artigos anteriores pude discutir alguns dos motivos de tal aumento, que preocupam cientistas, oncologistas e a população em geral. Por outro lado, tive também ocasião de referir que, mesmo com limitações e necessidade de melhoria a vários níveis, a deteção, o diagnóstico, a compreensão dos mecanismos envolvidos para o seu desenvolvimento e o tratamento da maior parte dos cancros, tem mostrado avanços importantes. De uma forma geral, as pessoas que desenvolvem vivem cada vez mais tempo. No entanto, como é sobejamente conhecido, os tratamentos para o cancro são agressivos, estando associados a efeitos secundários importantes e que podem ser complicados de gerir. O efeito psicológico e físico dos tratamentos existentes atualmente não é de menosprezar. Tudo isto deixa clara a necessidade de mais investigação de qualidade para encontrarmos formas de detetar mais cedo, e tratar melhor, os cancros.
Nas últimas décadas, a atração por “produtos naturais” para reduzir a incidência e melhorar a eficácia no tratamento do cancro tem sido crescente, pela ideia de que serão menos agressivos. São raras as palestras que tenho o privilégio de proferir, sobre a Biologia do Cancro, em que não me perguntam sobre terapias baseadas em “produtos naturais” e a sua eficácia, onde encontrá-las, etc. A par deste interesse, muitos estudos têm sido desenvolvidos no sentido de perceber os reais efeitos de produtos naturais com propriedades antioxidantes. Por exemplo, a curcuma, derivada do açafrão, tem efeitos comprovados na redução da inflamação sistémica e poderá atuar também ao nível metabólico, reduzindo a acumulação de lípidos e a hipercolesterolemia, bem como propriedades antioxidantes potentes.
No entanto, a moda do consumo de produtos naturais antioxidantes para prevenção e tratamento de cancros teve o seu revés há cerca de 4-5 anos, ao serem conhecidos os resultados de ensaios clínicos internacionais que, essencialmente, não mostraram qualquer vantagem do seu consumo. Poderemos discutir se o desenho dos ensaios terá sido o mais indicado, se as doses administradas terão sido as mais adequadas, etc, mas os resultados foram bastante conclusivos, claros e não mostraram vantagem no tratamento do cancro. Quererá isto dizer que não há qualquer benefício na toma de produtos “naturais”?
Poderá ser surpreendente para muitas pessoas, mas, na verdade, mais de metade das terapias “químicas” para tratamento dos cancros (as famosas “quimioterapias”) foram descobertas a partir de fontes naturais, como plantas e microrganismos (especificamente bactérias e fungos). Escolho como exemplo a pesquisa que resultou na identificação do fármaco denominado Taxol (Paclitaxel), que foi iniciada em 1962 resultante de um programa de financiamento ambicioso por parte do Instituto Nacional do Cancro, nos EUA, e que tinha como objetivo encontrar novos produtos naturais para o tratamento do cancro. Foi somente em 1971 que Monroe Wall e Mansukh Wani, investigadores do Research Triangle Institute, na Carolina do Norte, isolaram um composto a partir da casca da árvore Taxus brevifolia (“Teixo do pacífico”) com efeitos “citotóxicos” (causava morte de células em ensaios laboratoriais, nomeadamente de células tumorais). Batizaram este novo composto de “Taxol”, apropriado à sua origem.
Há inquestionável interesse científico e clínico em identificarmos e percebermos os mecanismos de ação de produtos naturais, nomeadamente os derivados de plantas, para o tratamento de cancros. Mas o potencial clínico destes produtos tem sido globalmente reduzido, devido a várias características químicas e físicas que impactam a sua farmacodinâmica
Os mecanismos de ação do Taxol foram descobertos por investigadores interessados em biologia celular e no estudo da divisão descontrolada das células de cancro. Foi então descoberto, em 1979 – por Susan Horwitz (uma Farmacologista Molecular do Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque, nos EUA) – que o Taxol estabilizava estruturas celulares chamadas de microtúbulos, essenciais para o alinhamento dos cromossomas durante a divisão celular. Assim, células tratadas com Taxol não se dividem apropriadamente, ficando com números errados de cromossomas e, consequentemente, morrem. O interesse pela utilização deste fármaco para tratamento do cancro foi enorme, mas a dificuldade em descobrir a fórmula química e sintetizar quantidades suficientes implicava, em 1980, o abate de 3000 árvores para obter 1kg de composto. Esse interesse teve impacto na população do Teixo do pacífico, que em meados dos anos 80 do século XX foi quase extinta.
No final dos anos 80, houve uma verdadeira corrida para descobrir e desenvolver a síntese total de Taxol que usasse muito menos quantidade de árvores, resultando num “empate técnico” entre dois grupos de investigação, o de Robert Holton (que teve o primeiro artigo descrevendo a síntese total de Taxol aceite para publicação) e o de KC Nicolaou (cujo artigo terá surgido impresso uma semana antes), em 1994. Esta descoberta resultou na aprovação do Taxol para tratamento do cancro. Atualmente sabemos da sua eficácia no tratamento de alguns tipos de cancro da mama e do ovário, entre outros. Outros exemplos de fármacos bem conhecidos, isolados a partir de produtos naturais incluem a quimioterapia “daunorubicina”, utilizada no tratamento de certos tipos de leucemia aguda e que foi identificada a partir de bactérias existentes nos solos, ou o “etoposido”, identificado a partir de extratos da “mandrágora americana” (Podophyllum peltatum). O consumo desta planta é extremamente venenoso, devido às elevadas quantidades de “podofilotoxinas” que contém. O etoposido foi descoberto a partir de extratos desta planta, mas sintetizado pela primeira vez em 1966, tendo sido aprovado para tratamento de cancros como o do testículo, sarcomas, glioblastoma, entre outros, em 1983.
Há inquestionável interesse científico e clínico em identificarmos e percebermos os mecanismos de ação de produtos naturais, nomeadamente os derivados de plantas, para o tratamento de cancros. Mas o potencial clínico destes produtos tem sido globalmente reduzido, devido a várias características químicas e físicas que impactam a sua farmacodinâmica: são normalmente pouco solúveis, dificilmente absorvidos pelo organismo e têm um tempo de ação limitado. Ou seja, consumirmos produtos naturais que contenham um determinado composto com propriedades anticancerígenas poderá ser na verdade muito pouco eficaz. Mais investigação, para identificar e sintetizar os compostos mais relevantes, perceber a sua farmacodinâmica e perceber a suscetibilidade dos diferentes cancros à sua administração, é necessária!
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