Subia todos os dias as escadas de madeira até ao quarto andar. O velho edifício era como um barco. Do topo avistava-se o Tejo e em cada piso remavam tripulações nem sempre articuladas. Vivemos aí muitas tempestades. E, tendo passado antes por outras redações, foi aquela em que primeiro me senti parte de uma grande família disfuncional, com amores e ódios, muitas noitadas, zangas, gritos, gargalhadas e piadas que mais ninguém entendia. É difícil explicar a quem nunca viveu numa redação (porque se vive lá dentro) o que é esta coisa de ser jornalista. Visto de fora, parece insano. E é.
A um jornalista que se preze nunca ninguém precisa de mandar trabalhar. Nunca paramos. Alguma coisa nos agita as antenas e aí vamos nós, lançados, atrás da magia da notícia. É um vício. Às vezes não dá para pagar as contas. E quem está de fora pergunta muitas vezes porque é que insistimos nesta relação tóxica. Mas é difícil sair. Na verdade, sai-se da profissão sem nunca se deixar de ser jornalista. É uma coisa que nos fica colada à pele, um instinto, uma maneira de ver o mundo.
As paixões são incompreensíveis e ridículas. E, por isso, estas linhas não dizem nada a quem não está apaixonado por fazer jornalismo. Soam a uma excentricidade fora de moda, uma arrogância fora de tempo, uma irracionalidade fora de pé. E é mesmo assim. É isso tudo. E é por isso que talvez não devesse tornar pública esta declaração de amor. Os amores segredam-se. Não se gritam.
Talvez não devêssemos deixar que soubessem o quanto amamos esta profissão. “Não é uma profissão, é um ofício”, dizia-me ontem uma camarada (porque é camaradas que somos). E tem razão. Nem sei se não será mais do que um ofício, uma forma de ser. Porque ninguém pode deixar de ser o que é, porque um vício é uma coisa que nos comanda, porque a paixão nos faz pairar acima das coisas comezinhas, tira-nos o sono e a fome. E, afinal, porque é que nos deviam pagar para fazer uma coisa destas? Uma coisa que não conseguimos parar de fazer?
Naquele edifício nau, estive várias vezes à beira do naufrágio. Em todas as redações que se seguiram, cada vez mais encolhidas, cada vez mais vergadas, encontrei o mesmo amor e as mesmas tempestades. A nave vai, mas adornando.
Sim, não devia insistir nesta imagem quixotesca, que nos faz parecer antiquados, obsoletos, desligados do mundo, convencidos de termos sido ungidos por uma força maior. E, sobretudo, incapazes de autocrítica, quando na verdade nos consumimos tantas vezes na frustração e no desespero dos amores que não conseguem ser perfeitos e sucumbem à realidade.
Há nas fábricas operários que resistem quando a empresa ameaça falir. Há amor em quem faz sapatos. Há nas caixas de supermercado quem encontre camaradagem nos colegas de trabalho. Há paixão cega em quem ensina. Há esforço e dedicação em quem trabalha em hospitais, limpa casas, monta janelas e caixilharia. Não há nada de tão especial assim em quem faz jornalismo. O amor só é especial para quem o vive por dentro. Visto de fora, é tão banal.
Os tecnocratas assépticos que desenham folhas de Excel, os que vivem deslumbrados com a magia dos algoritmos e da inteligência artificial, os que não querem saber porque já sabem tudo, os que querem que os outros não saibam nada, os que vivem enrolados dentro seu umbigo, os que deixaram de saber questionar-se, os que seguem a manada, os que perderam a fé na Humanidade e no fundo anseiam ser substituídos por androides sem paixões… Esses não precisam de nós. Espera-os um amanhã feito de verdades alternativas e trevas, com tribos desavindas incapazes de comunicar entre si.
O futuro não tem de ser assim. Nada do que ainda não aconteceu está escrito. Assim tenhamos nós a força e a coragem para resistir, porque a paixão não nos falta.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Um defeito de pele que está nos nossos olhos
+ A capa é verde, mesmo que digam que é vermelha
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.