Quando informei um amigo que vive em Barcelona de que a Joana Marques estava a ser processada pelos Anjos ele perguntou-me: “A banda?”. E eu respondi: “Não, as entidades celestiais.”. E assim começou mais uma das dezenas de conversas que tenho tido desde que não fui convidado a participar, e participei, no programa da Joana Marques, o Extremamente Desagradável, que para quem não conhece é uma espécie de colonoscopia radiofónica.
Admito que até ser vilipendiado publicamente pelas Três da Manhã, eu não tinha ponderado muito sobre a rubrica matinal da Joana na Renascença. Enquanto pessoa que faz comédia, tenho gigante admiração pela carreira dela, estou convencido que a Joana vem aniquilar, e bem, o preconceito de que as mulheres não têm graça. Conheço outros comediantes que não apreciam o Extremamente Desagradável, mas da minha parte, ainda não tinha refletido sobre o tema. Ora sucede que um bom achincalhamento nacional promove a reflexão.
Vou já atalhar, porque nunca se sabe quem é que tem um cabrito no forno, e dizer que concluí que o Extremamente Desagradável podia alterar o nome para Frequentemente Irresponsável. Não porque ache que o humor deva ter limites, até porque os únicos limites que o meu humor tem são no número de bilhetes vendidos. Tão pouco por ter sido visado, porque sempre tinha tido a ambição de ser um dos lesados da Joana e as marcas que me apoiam o podcast Ex-Clarecido agradeceram (e já perguntaram quando é que volto a ser injuriado nas manhãs da rádio). O Extremamente Desagradável é irresponsável porque, frequentemente, é menos um programa de humor e mais uma sessão de bullying pelas miúdas populares do liceu.
Na maioria dos episódios Joana faz o essencial da comédia: dá uma lição de humildade a pessoas poderosas e sem noção. E isto, além de muito engraçado, faz falta. Usar o humor para desarmar os poderosos é uma tradição antiga, já dizia o comediante romano Biggus Diccus: “E queres uma salada, César?”
Contudo, alimentar uma máquina diária que rende um patrocínio de largos milhares de euros é difícil: a Renascença tem audiências para manter, as Três da Manhã têm famílias para alimentar e a Joana, em particular, tem Happy Meals para vender. Ora, para bem de todos, as pessoas poderosas sem noção não são inesgotáveis. Por isso, a rubrica da Joana passou a incluir também pessoas que – não sendo particularmente influentes – estão só a desfrutar do seu quotidiano normal e a pagar os seus impostos, até ao dia em que acordam e têm todo um país a caluniá-las.
Vamos começar por um exemplo fictício que aconteceu mesmo, de uma comediante de vinte e poucos anos que falou num podcast, ouvido por poucas pessoas, que fala com o desprendimento e irresponsabilidade de quem acabou de começar e está a falar para ninguém. Esta miúda, se soubesse que estava a falar nas manhãs da Renascença provavelmente teria outro cuidado (ou até nem teria, porque ainda não sabe). Pegar numa pessoa assim e expô-la a um público nacional, para a ridicularizar, não é muito diferente de inscrever um miúdo de 12 anos que treina ténis há dois meses no Roland Garros e depois fazer pouco dele quando perde todos os jogos.
No entanto, mais problemático é quando o Extremamente Desagradável edita e descontextualiza conteúdos reais para construir uma personagem caricatural que encaixe bem nas piadas. É uma espécie de comédia de ficção, mas o público que ouve o programa não sabe, e acaba por acreditar que a pessoa retratada naqueles trechos é realmente um biltre unidimensional e abjeto, da autoria de Joana Marques. Portanto, curto e grosso, fazer humor com pessoas sem noção não é um problema, mas criar personagens sem noção e colá-las a pessoas reais para fazer humor, levanta várias questões.
Para quem diz (e são muitos) “são só umas piadas, não sejam ressabiados, faz parte”, esta foi a minha experiência: nunca tinha recebido comentários de ódio até ao dia em que fui presenteado com a minha participação no programa da Renascença. A internet brindou-me com mais de uma centena de comentários sinistros sobre o meu carácter e o carácter das pessoas que fazem parte da minha vida. Estas mensagens não eram dirigidas ao David Cristina que existe na internet há mais de 10 anos e que tem mais podcasts do que seria sensato. A bílis era inteiramente dirigida ao personagem que a Joana criou. Rendeu-lhe dois episódios. Deu para vender mais uns Dacias. A mim deu-me para passar duas tardes a bloquear perfis nas redes sociais. Mal passaram outros comediantes mais novos que depois de “convidados” para o Extremamente Desagradável passaram duas semanas sem sair de casa.
Quando o Extremamente Desagradável começou, fazia frente aos poderosos e aos bullies, era David contra Golias. Olhando para a Joana Marques com aquele ar de bibliotecária que almoça sozinha, é fácil esquecer que se tornou numa das vozes de humor mais influentes de Portugal e que já não é David, é Golias.
Se a Joana não começar a escolher melhor as vítimas, arrisca-se a quebrar mais um grande preconceito, o de que os bullies são sempre altos e atléticos.
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