Um estrondoso aplauso coroou a promessa de Luís Montenegro, segundo a qual o programa da disciplina de Cidadania irá ser revisto, de forma a expurgá-lo “das amarras a projetos ideológicos ou de fação”. No Congresso do PSD, o primeiro-ministro tinha de dar qualquer coisa aos congressistas. Qualquer motivação identitária que libertasse o Governo das “amarras ideológicas”, impostas pelo PS, na recente negociação para o Orçamento. Acossado pelo Chega, que acusa PS e PSD de serem iguais, o povo “laranja” agarrou com ambas as mãos esta oportunidade de se desforrar de um discurso por ventura demasiado tolerante e morno de Luís Montenegro, nas declarações públicas a propósito dos encontros com Pedro Nuno Santos. Depois, o líder do PSD foi por ali fora, prometendo um combate sem tréguas contra a violência, o tráfico de drogas e a imigração ilegal, tudo bandeiras de senso comum que qualquer português aprovaria se, entretanto, o discurso não tivesse sido contaminado, ideologicamente, pela direita populista e radical. E o PS, que devia aplaudir tudo quanto é combate ao tráfico de droga ou à violência doméstica – flagelo também visado no discurso de Montenegro –, acusou, afinal, o PSD de estar a “apropriar-se do discurso da extrema-direita”. E o próprio André Ventura sentiu-se picado, acusando Montenegro de lhe roubar as ideias. A política atingiu um estado de esquizofrenia tal, que até já se tornou politicamente incorreto defender a própria autoridade do Estado de direito, na sua missão de manter a segurança e a autoridade democrática nas ruas: afinal, nós todos percebemos onde Montenegro quis chegar. E “chegar”, neste contexto, é a palavra adequada…
Mas, antes de procurarmos saber se, afinal, PSD e PS são iguais, como diz o Chega, ou o PSD e o Chega são similares, como parece dizer o PS, detenhamo-nos um pouco sobre “as amarras ideológicas” da disciplina de Cidadania. Também a ditadura teve a sua disciplina equivalente, a chamada OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação), em que se ensinava, nas escolas, os fundamentos políticos e constitucionais do Estado Novo. Nas entrelinhas do discurso de Montenegro, que fala em limitar o ensino da disciplina aos fundamentos constitucionais do País, parece voltar-se a esse âmbito limitado, ignorando-se todas as outras matérias que devem formar o cidadão e que estão previstas no programa da disciplina, desde as questões ambientais, ou de organização do trânsito na via pública, à sexualidade e – aqui é que está o busílis – à suposta ideologia de género. Olhando para o programa, é verdade que, neste aspeto concreto, talvez os textos tenham ido longe demais, passando dos simples factos à opinião e às tomadas de posição de quem os redigiu, como muito bem apontou Cecília Meireles, esta semana, na SIC Notícias. Mas isto não significa que estas questões não devam ser tratadas e “ensinadas”: afinal, quem é que determina o que são “amarras ideológicas” ou “de fação”? Será este Ministério da Educação? E o que significa isso? Substituir umas amarras ideológicas por outras amarras ideológicas mais ao gosto de Luís Montenegro? Os direitos humanos, vão, nos nossos dias, muito para lá da respetiva Declaração Universal, sufragada pelas Nações Unidas, em 1948. Na nossa civilização, que, noutros contextos, os partidos populistas tanto gostam de defender, enchendo a boca com “o nosso modo de vida”, estes direitos incluem a liberdade de orientação sexual e, sim, a livre identificação de género. E os direitos humanos não podem, nunca, ser considerados “amarras ideológicas”. Mexer nisto por cima da rama e alterar programas só para o aplauso da plateia é divisivo e temerário.
Mas será que, para se distinguir do PS – e escapar à acusação do Chega, tentando recuperar-lhe, de caminho, algum eleitorado –, era necessário recorrer a isto? Vejamos: o Chega acha que, por o PS se abster no Orçamento, PS e PSD são iguais. Significa, portanto, que quando PCP, BE e Chega votam contra o Orçamento, isso faz do partido de André Ventura uma força política igual a comunistas e bloquistas. É a mesma ordem de ideias, reforçada pelo facto de que todos, muito juntinhos, votarão contra, enquanto PSD e PS, ao menos, votam de maneiras diferentes: um, a favor, o outro abstendo-se. A simples enunciação deste argumento, na discussão parlamentar da próxima semana, chegaria e sobraria para esvaziar os estafados argumentos de Ventura. Não é preciso, caro Luís Montenegro, entrar numa espiral ideológica em que o PSD sairá sempre a perder.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR