Nas muitas tonalidades que nos são dadas dentro do conceito de liberdade, não haja grandes dúvidas de que é melhor viver em Portugal do que na Coreia do Norte. Ou do que na Arábia Saudita para quem é mulher. Mas a ilusão de que somos cidadãos dentro do mercado – e não apenas contribuintes e consumidores – estilhaça-se quando ouvimos histórias como a do “cartel da banca”.
Já toda a gente o sabia, no fundo, mas vamos levando a vida sem pensar muito nisso, perante o sentimento de impotência que a situação nos coloca. Qual é a alternativa? Não comprar a casa de que precisamos? Mas depois vem o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão abalar esta convivência conformada com o mercado nada livre, e deixa-se instalar a revolta.
Onze bancos foram condenados pela prática de cartel durante mais de uma década, entre 2002 a 2013, trocando informações sobre spreads futuros, por exemplo, retirando às famílias e às empresas o poder de escolha sobre o crédito que iam fazer, numa “prática concertada” e largamente “disseminada” no mercado bancário português, palavras da juíza Mariana Gomes Machado, que acrescentou na leitura da sentença: “A habitação é um ativo relevante para as famílias portuguesas”. É.
E depois vem a lista das coimas. A mais gravosa, no valor de 82 milhões de euros, vai para a Caixa Geral de Depósitos, o banco do Estado. O banco que devia ser a referência, o pêndulo que evitaria maiores ganâncias à custa das famílias endividadas, e que no primeiro semestre deste ano obteve um lucro de 889 milhões de euros.
A multa será uma gota no oceano da voracidade do dinheiro, mas devia ser algo de vergonhoso. Não é. A juíza também sublinhou a “ausência de sentido crítico” dos bancos em relação ao que fizeram, o que preto no branco quer dizer que não se arrependem em nada. Mas porque esperaríamos que o “mercado livre” – entidade da qual sabemos que é apenas permeável aos nervos, quando os mercados se “enervam” – fosse dotado de sentimentos de empatia e solidariedade?
Numa entrevista à VISÃO, o empresário André Jordan, já falecido, dizia: “‘Para um pequeno empreendimento, ninguém te dava um tostão. Mas se falarmos em milhões, aí aparece o dinheiro.” Tudo remará pelo sucesso do grande empreendimento e das contas aos juros que esses milhões emprestados vão trazer, e a sua queda está fora de questão – ainda que seja uma loucura, torna-se “too big to fail”, mete-se mais dinheiro se for preciso, numa espiral que um dia será paga, também, por quem pediu um empréstimo de 120 mil euros para comprar uma casa.
Voltamos à lista: BCP, Santander, BPI, Montepio, BBVA, BES, Bic, Crédito Agrícola e UCI. Um total de 225 milhões de euros em coimas. Havia mais instituições bancárias no processo, mas a infração do Abanca prescreveu e o Barclays ficou apenas com uma admoestação, uma vez que recebeu clemência por ter denunciado todo o esquema à Autoridade da Concorrência.
Estas decisões dos tribunais e as investigações da Autoridade da Concorrência são também geradoras de dúvidas: os reguladores que o mercado criou para si funcionam ou criam-nos a ilusão de que funcionam, muito de vez em quando, não chegando os seus braços a tantos outros cartéis? Pior: trazer um processo de cartelização à luz do dia pode, de facto, mudar alguma coisa? Liberdade ainda vai havendo, para pensar nisto tudo.
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