Kamala Harris é um “mattress” (colchão: calão para mulher que ascende por via sexual), um “hoe” (sacho: calão para mulher que tem muitos parceiros sexuais). Resumindo: caso ainda não tivesse ficado claro, ela “usa o sexo para subir na carreira”. Foi assim que Rush Limbaugh, uma estrela da rádio, classificou a então recém-nomeada vice-presidente dos Estados Unidos da América.
Kamala Harris é uma mulher “zangada”, um “monstro”, acrescentaria Donald Trump em 2020, pronunciando de propósito o seu nome de forma errada, para parecer mais “estrangeiro”. Joe é o Biden, Donald é o Trump, Barack é o Obama, Bill é o Clinton, mas Kamala não é a Harris, é a Kamala, como Hillary sempre foi a Hillary. Muito mais familiar (e condescendente) chamar pelo nome próprio.
Porém, Kamala Harris não é só uma mulher; ela é afro-americana, ou não: é “indiana e jamaicana”, embora tenha nascido na californiana Oakland. Mas o seu pai nasceu na Jamaica e a sua mãe na Índia, são “estrangeiros” – essa massa de que é feita a terra dos livres e dos bravos. E o debate sobre a identidade étnica da vice-presidente não tem fim, como se isso fosse fulcral para acabar com as guerras na Ucrânia e na Palestina, salvar a economia norte-americana, descobrir a cura definitiva para o cancro.
Será um fator a pesar nas sondagens para as eleições presidenciais de novembro? Com certeza, como o sexo também o é, e importantíssimo. Conseguem os eleitores aceitar, com naturalidade, que uma mulher tenha os códigos das bombas nucleares?
Em 2016, Hillary Clinton foi trucidada por um “camião” de sexismo. E não eram apenas os comentários das “pessoas comuns”, nas redes sociais, como explicou Huma Abedin, sua colaboradora de campanha; eram também os “bitaites” dentro da campanha, para que ela imitasse mais o estilo masculino, tivesse cuidado para não parecer uma “mulher zangada” ou moderar o tom de voz para não parecer tão alto. O ultraconservador apresentador de televisão Tucker Carlson chegou a dizer: “Quando Hillary Clinton aparece na televisão, eu inadvertidamente cruzo as pernas.”
Este estado de coisas não acontece apenas entre o eleitorado conservador (republicano) contra as candidatas liberais (democratas). O mesmo aconteceu a Sarah Palin, que, em 2008, concorreu à vice-presidência como parceira de John McCain. Palin, escolhida para agradar à ala Tea Party dos republicanos, apresentou-se publicamente como uma mãe de família – e foi atacada por andar na política e deixar os filhos “abandonados”.
Kamala Harris não foi uma vice-presidente brilhante. Muitos analistas políticos dizem mesmo que ela desperdiçou o grande palco que conquistou há quatro anos, especificamente no que diz respeito à imigração e ao controlo de fronteiras, uma das suas pastas. Aqui, a vice-presidente tem sido criticada tanto à esquerda como à direita, e o problema da imigração segue sem solução à vista. Já nos últimos tempos, Harris tem encontrado uma voz no que diz respeito à questão do aborto, que tem estado a ser muito restrito – e mesmo proibido – por esses estados fora.
Agora terá de mostrar muito mais, na economia, na política internacional… Estará ela já ferida de morte, sem tempo para carregar o partido até à vitória (e, pelo caminho, livrar o mundo de Donald Trump)? É isso que podemos discutir até à exaustão. Que seja a política, e não a cor dos fatos ou o tom de voz, a elevar as conversas.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR