1. O chamado “caso das gémeas” ultrapassa todos os limites. Não só da falta de sentido da medida e das prioridades, na ação política e no Parlamento, como na ausência do mínimo exigível de sensatez, inteligências das coisas, “humanidade”. A factualidade com que foi apresentado ou sugerido, justificava alarme e impunha averiguações que permitisse formular juízos, inclusive políticos, com as consequências que deles se devessem tirar. Como aqui escrevi.
Resumo dessa factualidade: as meninas eram brasileiras, tendo conseguido, mercê de influência política, a nacionalidade portuguesa em tempo recorde, para virem para o nosso país a fim de serem tratadas, o que não haviam conseguido no Brasil, com o medicamento “mais caro do mundo”, de que não havia notícia de antes já ter sido ministrado entre nós. Ou seja, tudo configurando favorecimento ilegítimo, via Presidente da República, a pedido do seu filho, com enorme dispêndio para o erário público.
Ora, o que de essencial hoje se sabe é: as gémeas são, por direito próprio, portuguesas (luso-brasileiras); o processo administrativo para as formalizar como tal não violou qualquer regra ou prazo; as duas meninas não foram as primeiras a ser tratadas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) com aquele medicamento – nem, ao serem-no, ultrapassaram alguém que estivesse à sua frente para o efeito. Além disso, não há nada que proíba de no SNS, dadas as suas carências financeiras, serem ministrados medicamentos ou feitos tratamentos de elevado custo.
2. Sendo assim, onde está a matéria que justifique todo o alarido com o “caso” e, sobretudo, haver uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre ele? Proposta, claro, pelo Chega, a que outros grupos parlamentares parecem ter cada vez mais dificuldade, ou menos coragem, para se oporem, pelo menos com eficácia.
De facto, o que está em causa é só saber se o pedido que o filho de Marcelo lhe fez teve teve influência em todo o processo – e até agora nem se apurou ter havido da parte do pai alguma conduta fora dos procedimentos normais da Presidência; e saber se a teve a marcação de uma consulta através do gabinete do secretário de Estado da Saúde, “arguido”, com um médico, na investigação criminal em curso.
Investigação criminal, de que crime? Porque se houve, chamemos-lhe “cunhas”, neste caso, o que é muito provável, pelo que resulta de tudo que se conhece foi para tornar mais rápido o tratamento para salvar a vida de duas meninas. Sem prejudicar ninguém, sem ultrapassar ninguém que a isso tivesse mais direito. Deve ser isto não motivo de, pelo menos, compreensão, mas objeto de perseguição penal e política?
3. A isto chegamos. Culminando com a CPI e a audição nela da mãe das meninas. A recordar, com inevitável comoção, tudo o que fez para as salvar. E de seguida a ser “interrogada”, na diligência parlamentar mais lamentável e degradante de que na minha longa experiência tenho memória. Política e, o que é muito pior, humanamente inadmissível. E o espetáculo da CIP lá continuará, até com inesperadas atrações, como António Costa. A ser ouvido, de novo por proposta do Chega, aprovada, pasme-se!, pelo PSD, depois de admitir que ele não iria lá fazer nada.
Chega que continua a não olhar a meios para atingir os seus consabidos fins, demasiadas vezes parece que com a conivência, por ação ou omissão de não poucos, incluindo nos media – decerto, em geral, mais por falta de inteligência das coisas e de competência do que por convicção. Chega agora a convocar polícias e outras forças de segurança para o Parlamento, com a óbvia intenção de condicionar o que nele se vai debater. Chega a tentar, e já em parte a conseguir, conquistá-las, manipulá-las, aplaudindo com entusiasmo tudo que elas, e agora já também o MP, façam e possa servir para atacar ou fragilizar o regime democrático.
Mas estamos nisto: sem o mais ínfimo fundamento acusar um Presidente da República de “traição à pátria”, nenhuma consequência, eventual “cunha” para salvar a vida de duas meninas, uma CPI. Quando se começará a debater e tratar a sério da “legítima defesa” da democracia?
À MARGEM
O exemplo francês
As sondagens confirmaram-se e a extrema-direita foi a força mais votada nas eleições francesas. Face a tais sondagens, a esquerda teve a visão e capacidade políticas, aliás bastava o bom senso, de se unir, apesar de todas as suas diferenças. E ficou em segundo lugar, os centristas do Presidente Macron em terceiro.
O sistema eleitoral francês, a duas voltas, permite que acordos entre os dois blocos, de esquerda e de centro, impeçam que a extrema-direita venha a vencer e governar o país, mantendo-se um governo “republicano”. Saliento a clareza e vigor com que o jovem primeiro-ministro, centrista, apontou logo nesse sentido, enquanto o líder da esquerda, antes de o fazer, salientou antes a derrota de Macron. Não gostei… – mas espero que tudo se resolva.
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