Escrevo estas linhas na tarde de terça-feira, 19, com os votos dos emigrantes ainda por apurar. Como o futuro é cada vez mais incerto, manda a prudência que se sentencie com cautela. Julgo, porém, ser possível dizer com relativa segurança que, no essencial, os resultados das eleições legislativas não tiveram grandes surpresas. Esperava-se um empate entre o PS e o PSD, antevia-se como bastante provável uma vitória por uma unha negra (nesta disputa, uma certa desvantagem dos socialistas, o governo incumbente) e um crescimento significativo do Chega. No achómetro do comentário televisivo e da opinião publicada, a doutrina dividia-se, isso sim, acerca do número de votos que a estrutura partidária de André Ventura poderia vir a obter nas urnas, com as sondagens a oscilar entre os 12 e os 21 pontos percentuais.
Em certo sentido, os resultados do Chega reproduzem uma tendência internacional da qual as europeias de junho serão o teste final e as presidenciais norte-americanas de novembro o grande tira-teimas. Por cá, no entanto, permanece um clima de surpresa no ar, sobretudo no que diz respeito ao milhão de eleitores que escolheu votar no partido fundado por Ventura em 2019. A perceção decorre do facto de uma parte do “sistema” – para usar uma palavra muito estimada pelos partidos populistas, que tendem a simplificar as tensões e a dividir tudo entre o “nós” e o “eles”, o povo virtuoso e as elites corruptas – continuar a interpretar a política à luz dos media tradicionais, conjunto no qual, naturalmente, a VISÃO se inclui. Estas lógicas não desapareceram, continuam a existir e a ter importância, sobretudo para um eleitorado mais velho, como é sabido. Mas outras impõem-se, e não devem ser ignoradas pelo “sistema”.
Para os media, as legislativas 2024 são um ponto de viragem. Desde logo, pelo facto de os candidatos se terem desdobrado entre programas da manhã, podcasts de humoristas e conversas sobre a vida privada com figuras do entretenimento, mas recusado ser entrevistados pelos principais órgãos de informação. É certo que, pelo meio, houve 30 debates televisivos, na sua maioria, bem moderados por jornalistas. No entanto, além de não terem tido as audiências das legislativas de 2022, estes confrontos foram, em grande medida, percecionados através de fragmentos, soundbites ou pequenos vídeos editados à medida, amplificados depois pelos algoritmos e, não raras vezes, transmitidos pelos partidos nas suas redes sociais, aqui usadas, claro, como instrumentos de propaganda.
Estranho seria que estas novas formas de entender a política, nas quais a mediação jornalística está ausente, não captassem a atenção do eleitorado mais jovem e menos experiente. Não só é natural como é até saudável, eu diria. Se os mais novos não se sentissem atraídos pela novidade, o que seria da inovação, da vontade de arriscar e da esperança num futuro melhor? O problema é que uma parte desse eleitorado privilegia as redes sociais como fonte de informação ao mesmo tempo que revela uma profunda desconfiança no “sistema”. Não só não o considera credível como, inclusive, o vê como tendencioso. Instituições democráticas, partidos políticos e media tradicionais são tudo farinha do mesmo saco, deste ponto de vista. E, ao invés, o algoritmo parece ser a medida ideal de análise, porque tende a rejeitar as opiniões divergentes e a confirmar as ideias preconcebidas.
Não é segredo para ninguém que este turbilhão mediático representa um desafio para o jornalismo livre e independente. Não por acaso, tudo está a acontecer no momento em que, um pouco por todo o mundo, o mercado dos media é afetado por uma crise de financiamento sem precedentes. No terramoto antissistema que são as direitas populistas, o jornalismo – enquanto instituição das democracias ocidentais e fonte de escrutínio dos poderes públicos – também está em perigo e, para usar uma expressão popular, corre o risco de ir com a água do banho.
Na semana passada, o Sindicato dos Jornalistas convocou uma greve nacional, a primeira em mais de 40 anos. Conforme noticiado, foi significativa a adesão entre os profissionais, que reivindicaram melhores salários, melhores condições de trabalho e liberdade editorial. Sou jornalista há 26 anos e, posso dizê-lo, sou uma privilegiada: não me considero mal paga e trabalho numa Redação onde as decisões editoriais são tomadas tendo em conta o superior interesse dos leitores. Fiz greve porque me identifico com o essencial das razões invocadas e, sobretudo, porque me recuso a interpretar o mundo à luz do meu umbigo. A si, caro leitor, agradeço-lhe a confiança no trabalho da VISÃO e peço-lhe que não deixe que atirem o bebé com a água do banho.
Breviário
A lição de Popper
Desde que, em 2016, Hillary Clinton chamou “deploráveis” aos apoiantes de Donald Trump que nenhum político se atreve a criticar os cidadãos que, um pouco por todo o mundo, têm optado por votar nas propostas dos partidos populistas. À nossa escala, Pedro Nuno Santos usou o seu talento para ler o instante e expressou-o, de imediato, na noite de 10 de março: “Não há 18% de portugueses votantes racistas e xenófobos.” Não só é legítimo como é desejável que o PS – bem como os restantes partidos tradicionais – queira resgatar uma parte desse eleitorado zangado. Convém é que não se esqueça do “paradoxo da tolerância” enunciado por Karl Popper em A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, um dos livros de filosofia política mais importantes do século XX, à esquerda e à direita: “Se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”
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