A última intervenção do historiador Lee de Jesus apanha-me em viagem num ciclo de conferências literárias em França, sem acesso por isso à minha documentação e sem tempo disponível, o que me dificulta os esclarecimentos. Mas vou fazer um esforço numa questão que, como oportunamente alertei, é realmente muito técnica e depende de pormenores quase bizantinos.
Começo por constatar que Lee de Jesus dá por encerrada a questão das origens marxistas do fascismo e esclarece que não põe em causa a avaliação nem o rigor da tese. Se assim é, então porque andou na Visão a pôr em causa as minhas afirmações verdadeiras sobre esta matéria, proclamando a quem o quisesse ouvir que eram “achismos e opiniões sem fundamento”? Quais são exatamente os achismos e as opiniões sem fundamento que eu emiti sobre este assunto? Na hora de fundamentar essas acusações, silêncio absoluto.
Estando este assunto assim encerrado, passemos então a Cristóvão Colombo. Lee de Jesus começa nesta sua última intervenção por fazer uma afirmação muito importante, a de que existe um documento assinado em Génova por Colombo. Isto é para mim novidade. Gostaria muito de conhecer tal documento, pois pode mudar tudo.
Convém recordar, como já expliquei no meu texto anterior, que a tese genovesa mostra grande dificuldade em provar que o plebeu genovês Colombo é o almirante e vice-rei ibérico Colón. Um dos problemas é que não se conheciam, pensava eu, documentos manuscritos pelo plebeu Colombo em Génova. Por exemplo, Cecil James escreveu, num estudo intitulado “The Question of the Literacy of Columbus in 1492”, que, além das notas que tomou nas margens de livros, “nunca foi sugerida a existência de quaisquer autógrafos de Colombo antes da descoberta” da América.
Ora, ao sugerir que tais autógrafos afinal existem, Lee de Jesus acabou de anunciar que essa ideia está errada. Se assim é, no entanto, cabe-lhe o ónus da prova. Que assinatura é essa? Pode ver-se uma imagem, por favor? É que, se há de facto um documento assinado pelo Colombo genovês, tem evidentemente de ser submetido a peritagem.
Isto porque tal assinatura pode ser decisiva em toda esta questão. Comparando essa alegada assinatura do Colombo genovês com a assinatura do almirante Colón (que se conhece muito bem, pois há vários exemplos dela), qualquer universidade poderá pedir para determinar, por análise caligráfica, se estamos ou não perante assinaturas da mesma pessoa. Isso encerraria toda esta questão. Portanto, parece-me importante que Lee de Jesus mostre essa assinatura.
Enquanto aguardamos por tal documento, cuja existência repito que desconhecia, falemos das outras questões suscitadas por Lee de Jesus no seu último texto. Sobre o problema de o tecelão genovês Colombo ser plebeu, alegou que o pai dele era mestre da corporação de tecelões de Génova. Mas isso nada desmente sobre a essência da questão. O pai poderia ser mestre das corporações que quisesse, mas isso não fazia dele nobre. Consequentemente, o filho também não era nobre. Essa é a questão que aqui verdadeiramente interessa. Ser-se um plebeu com “um certo estatuto”, para usar a sua expressão, que eu saiba não é ser-se nobre. Portanto, esta informação nada altera no que realmente é relevante: o Colombo genovês não era nobre. Era plebeu.
Lee de Jesus dedica-se depois a D. Filipa. Mas por mais voltas que dê, acaba também por não pôr em causa o que realmente interessa, o estatuto de nobreza da mulher do almirante Colón. Poderemos estar aqui horas a discutir se ela era da alta, da média ou da baixa nobreza, mas o que é firme é que D. Filipa era nobre. Por isso, a questão permanece: como pode o plebeu Colombo casar com a nobre D. Filipa?
Este problema leva também Lee de Jesus a esforçar-se por promover o estatuto do genovês Cristoforo Colombo, dizendo que ele era “um agente comercial de uma das mais poderosas casas comerciais genovesas que dominava o comércio do açúcar da Madeira”. Já agora, qual casa genovesa e qual a fonte desta informação? Para todos os efeitos, esta afirmação serve-lhe para reivindicar que “este tipo de casamentos era possível”. Entre plebeus e nobres? No Século XV?
Lamento, não estou convencido. Creio que o Livro de Linhagens do Século XVI nem sequer menciona os nomes dos maridos nos raríssimos casos em que mulheres nobres casaram fora da ordem. Tenho ideia de que existe o caso da filha do segundo capitão do Faial que fugiu com um plebeu e, segundo as crónicas da época, foi repudiada pelos pais. Consequentemente, um tal casamento de D. Filipa afigura-se-me, a mim e a vários historiadores, como altamente improvável.
Se a nobre D. Filipa casou com o plebeu genovês Colombo, tendo-se supostamente tornado este no importantíssimo almirante e vice-rei Colón, haveria decerto referências a notar essa enorme peculiaridade do casamento de D. Filipa. Ora tais referências não se encontram em parte alguma. Portanto, matéria nada sólida, exatamente como eu disse no Jornal 2.
Sejamos claros e acabemos com os contorcionismos. Para que o plebeu genovês Colombo casasse com a nobre D. Filipa só há realisticamente duas hipóteses, como qualquer historiador tem obrigação de saber: ou o tecelão Colombo nasceu nobre (o que sabemos não ser verdade) ou foi feito nobre em Portugal. Mas, nesse caso, teria de haver um documento a torná-lo nobre. Onde está esse documento?
Para compatibilizar o almirante e vice-rei Colón com o plebeu iletrado Colombo, Lee de Jesus procura desvalorizar o nível de educação do almirante e vice-rei Colón. Assim, diz que o latim de Colón “estava pejado de erros”, invocando para isso vários estudos. Estará a referir-se a João de Barros? Eu não sei latim, pelo que sinceramente não estou em condições de avaliar a qualidade do latim de Colón, mas ao que parece João de Barros analisou os textos de Colón em latim e concluiu que se tratava de latim de boa qualidade.
Suponhamos, no entanto, que o latim do almirante Colón era de facto mau (acredito na avaliação de João de Barros, mas não consigo avaliar por mim próprio e por isso tenho de admitir tal possibilidade). Mesmo sendo assim, isso nada quer dizer. Repare-se que estamos a falar de uma língua morta. Espinosa, por exemplo, também sabia latim e escreveu os seus livros em latim, mas, apesar de ter uma excelente educação e ser um homem imensamente culto, cometia erros no latim (de tal modo que pedia aos amigos para corrigirem o latim dele). O facto de cometer erros em latim não impede, pois, que Espinosa fosse um homem culto.
Da mesma maneira, mesmo que Colón tivesse um latim de má qualidade, e João de Barros elogiou o latim dele, isso não impede que fosse um homem educado. O facto é que, bem ou mal, ele sabia latim, a língua erudita daquele tempo. Como pode um tecelão plebeu saber a língua erudita? Não está explicado e quer-me parecer que estamos de novo perante contorcionismos.
Da mesma maneira, Lee de Jesus questiona a qualidade da capacidade matemática de Colón, mas não questiona que ele tinha conhecimentos de matemática. Sendo iletrado, onde no Século XV o plebeu Colombo aprendeu a matemática que o almirante e vice-rei Colón sabia, mesmo que cometesse erros? Acha mesmo que as pessoas educadas, incluindo os nobres do Século XV, estão acima de cometer erros de matemática?
Sobre o delicado problema de Colón ser um “itálico” que não sabia italiano, Lee de Jesus informa-nos que há pelo menos duas apostilhas da mão de Colón em ligure. Seria interessante vê-las, pois significariam que andou em idade adulta a aprender ligure. Esta informação, aliás, suscita questões interessantes.
Vejamos a cópia sobrevivente de uma carta de Colón ao embaixador de Génova em Espanha, datada de 21 de março de 1502. Trata-se de uma carta de um “genovês” para um genovês. Por estranho que pareça, o “genovês” Colón escreveu ao embaixador genovês… em castelhano. Mas, caramba!, não era Colón que, além de ser “genovês”, sabia ligure porque andava a escrever apostilhas em ligure? Então porque não escreveu ele ao embaixador genovês em ligure? Mistério.
Numa outra carta ao mesmo embaixador genovês, Colón chega a pedir-lhe que traduza a carta a um outro genovês, um certo Giovanni Luigi. Se sabia ligure e queria que um segundo genovês, que não sabia castelhano, lesse o texto, porque não escreveu Colón diretamente em ligure, língua em que pelos vistos andava a escrever apostilhas? Contabilizam-se cartas de Colón a cinco itálicos diferentes, três deles genoveses, e usa sempre o castelhano. Sendo correspondência entre itálicos, porque nunca escreveu numa língua itálica, designadamente o ligure?
É interessante notar aliás que o historiador e filólogo espanhol, Menendez Pidal, analisou as anotações feitas à mão por Colón em castelhano e concluiu que, sempre que o almirante se enganava no castelhano e usava uma palavra errada, essa palavra errada nunca era itálica. Nunca. Sempre que não sabia uma palavra em castelhano, as palavras a que Colón invariavelmente recorria… eram portuguesas.
Falemos agora nos dois documentos que fazem a ligação de Colombo a Colón. Lee de Jesus acha “estranho” eu levantar suspeitas sobre a oportunidade do aparecimento do Documento Assereto. Já lhe mostrei que é o próprio Armando Cortesão quem levanta essas suspeitas. Como também é o próprio Armando Cortesão quem suscita e estranha a quase arbitrariedade de o ano de nascimento em 1451 estabelecido pelo Congresso dos Americanistas em 1900 e o Documento Assereto aparecer logo quatro anos depois a referir a mesma data de nascimento.
Note-se que o ano de 1451 como do nascimento de Colón está longe de ser certo. Por duas vezes Colón escreveu à côrte a dizer que tinha 28 anos quando começou a servir em Castela. O filho, Hernando Colón, disse que o pai foi para Castela em 1484. Basta fazer as contas, como dizia o outro: 1484 – 28 = 1456. Ou seja, Colón nasceu em 1456. Ora 1456 não é 1451, o ano de nascimento definido pelo Congresso dos Americanistas e prontamente secundado pelo Documento Assereto.
Poderíamos pensar que estamos simplesmente perante uma referência contra outra. Porém, em 1492 Colón registou que navegava por 23 anos sem se descontar tempo nenhum. Ora 1492 – 23 = 1469, a data em que começou então a navegar. Acontece que Colón começou a sua carreira a navegar aos 14 anos. Portanto, 1469 – 14 = 1455. Portanto, por vias diferentes temos as contas a dar 1455/1456 como o ano de nascimento de Colón (a diferença de um ano pode explicar-se por diferenças de meses, que não são contabilizados nas referências).
O problema é que o Documento Assereto dá 1451 como ano de nascimento de Colón, precisamente o ano definido de forma discutível pelo Congresso dos Americanistas apenas quatro anos antes. Lee de Jesus está no seu pleno direito de confiar na data dada pelo Documento Assereto/Congresso dos Americanistas, mas eu e Armando Cortesão, e aliás outros historiadores e investigadores, também temos o direito de ser mais exigentes na crítica dos documentos e achar que estas discrepâncias são estranhas e fragilizam o Documento Assereto.
Lee de Jesus acha normal o Documento Assereto não referir a paternidade de Colombo. Ora eu acho estranho o nome de Colombo aparecer de forma simples, pois a referência da paternidade era uma prática relativamente comum e não foi usada neste documento.
Além disso, Lee de Jesus confirma que o Documento Assereto não está assinado, embora ache isso normal. O problema é que, não sendo um documento assinado, inevitavelmente isso retira-lhe força.
Tudo isto cria de facto fragilidades e impede que consideremos o Documento Assereto uma prova sólida. Se Lee de Jesus o acha sólido, é a sua opinião. Eu tenho outra.
Quanto ao Mayorazgo, Lee de Jesus admite que o Tribunal das Índias não o aceitou, mas alega que isso aconteceu não porque não fosse autêntico, mas por causa de documentos “posteriores”. Ora o que o tribunal escreveu para não aceitar o Mayorazgo, cujo texto é citado por Manuel Rosa, foi descrevê-lo como “nem legitimo, nem público, nem autêntico, nem solene”. Sublinhe-se: “nem autêntico”.
Além de que o inopinado de Colón se dirigir em 1498 ao príncipe Juan, que afinal tinha morrido no ano anterior, queira-se ou não e faça-se a ginástica que se fizer, é e continua a ser um anacronismo. Até pode haver uma explicação para este anacronismo de Colón escrever a um morto, note-se, mas, havendo o anacronismo, isso evidentemente retira força a este documento para que possa ser classificado como prova “sólida” de que Colombo era Colón.
Portanto, constato que Lee de Jesus acha o Mayorazgo uma prova sólida, mas lamento, eu tenho outra opinião. Se o tribunal da época o declarou uma falsificação (“nem autêntico”) e se temos um anacronismo destes, então isso afigura-se-me uma fraqueza incontornável desta prova. Se tem fraquezas, esta prova evidentemente não é sólida, como eu sempre disse.
Volta Lee de Jesus a convidar-me a consultar a lista de Consuelo Varela e Juan Gil, mas volta a ignorar que Consuelo Varela, que elaborou essa lista, acabou por concluir que não é capaz de dizer que Colón era de Génova. Se esta historiadora especializada no tema apresenta uma lista de provas “sólidas” e depois, com base nessa lista, não consegue afirmar que Colón era de Génova, admitindo até explicitamente que “desconhecemos o lugar onde nasceu”, o que nos diz isto sobre as provas da sua lista? Que não são sólidas. Sobre esta flagrante contradição entre a lista de Varela e as conclusões que ela própria tirou, nem uma palavra de Lee de Jesus.
Aliás, se as provas de que o genovês Colombo era o ibérico Colón são tão sólidas como Lee de Jesus pelos vistos acredita, por que razão, para além de Consuelo Varela, também historiadores como Armando Cortesão, Veríssimo
Serrão e João Paulo Oliveira e Costa não consideram nada evidente que Colombo seja Colón?
Na sua segunda intervenção, Lee de Jesus escreve que a opinião dos dois primeiros destes historiadores “não põe em causa este consenso”. Só que não são dois historiadores, são quatro. Ademais, a tese de doutoramento de Manuel Rosa sobre a impossibilidade de Colón ser o tecelão genovês Colombo foi avaliada e aprovada por unanimidade na Universidade dos Açores, o que significa que os membros do júri aceitaram como pertinente a dúvida demonstrada pelo doutorando. Então múltiplos historiadores, incluindo quatro importantes historiadores especializados na área dos Descobrimentos, não estão convencidos de que Colombo seja Colón… e o consenso não está em causa? A sério?
Já agora, seria interessante saber se também acusa todos estes historiadores de, ao se terem pronunciado no mesmo sentido que eu, também terem chegado às mesmas conclusões que eu “sem qualquer sustento nem credibilidade”. Não conhecerão Varela, Cortesão, Serrão e Costa a famosa lista de Varela e Gil com tantas provas “sólidas” (que aliás estranhamente não convencem a própria Varela que elaborou essa lista)? Será que acha também que estes historiadores não conhecem o Mayorazgo e o Documento Assereto? Serão todos eles uma “vergonha nacional”?
Ou será que o que eles estão a fazer é afinal uma “análise rigorosa e crítica das fontes”, a mesma análise crítica que eu fiz e que Lee de Jesus corretamente exige dos outros, mas que aparentemente não exige de si mesmo ao ponto de dar como bom o Mayorazgo que o Tribunal das Índias deu como “nem autêntico” e o Documento Assereto que nem assinado está?
Devo sublinhar em defesa de Lee de Jesus que a “análise rigorosa e crítica das fontes”, que não pratica em relação aos documentos que convêm à sua tese, acaba por ser uma inevitabilidade para quem toma partido de uma versão em detrimento de outra. Isto porque, se pegarmos em todos os documentos sobre Colombo/Colón e os dermos a todos como bons, constataremos que eles são contraditórios entre si. Consequentemente, não podem realmente ser todos verdadeiros.
Portanto, para podermos defender uma versão teremos sempre de desvalorizar as incongruências documentais dessa versão e valorizar as incongruências documentais das outras versões. Que é o que manifestamente Lee de Jesus faz ao desvalorizar persistentemente as evidentes incongruências das provas nas quais se sustenta a tese genovesa, como se pode constatar por esta sucessiva troca de argumentos.
O facto, no entanto, permanece na forma como eu o formulei originalmente no Jornal 2 e que tanto escandalizou Lee de Jesus ao ponto de considerar que estamos perante uma verdadeira “vergonha nacional”. O que eu disse, e mantenho, foi simplesmente isto: “não existe uma única prova sólida de que ele fosse de facto genovês”. Isto afigura-se-me uma evidência e não percebo que uma frase verdadeira cause tanto rasgar indignado de vestes.
Embora me pareça perfeitamente plausível a hipótese portuguesa, e para ela me incline por um conjunto de razões que estão expostas em O Codex 632, reconheço, como sempre reconheci desde o início, que tudo permanece em aberto. O que me parece claro é que, como tenho sempre dito, à tese genovesa faltam provas sólidas. Tal como me parece claro que o almirante Colón nunca poderia ser o tecelão plebeu Cristoforo Colombo, pelas razões apresentadas nestes meus textos e que também suscitam amplas dúvidas a alguns dos maiores especialistas sobre os Descobrimentos.
Mas tenhamos calma, porque parece que este mistério vai ser em breve deslindado. Aguardemos que a apresentação da assinatura feita num documento de Génova pela mão do plebeu genovês Colombo, de que nos fala Lee de Jesus, seja mostrada para que a respetiva caligrafia seja por especialistas sujeita a perícia e comparada com a do almirante ibérico Colón e este longo debate conheça enfim o seu tão ansiado epílogo.
© José Rodrigues dos Santos, 2023.