A Assembleia da República aprovou a Lei 55/2023, de 8 de setembro, que vai entrar em vigor no dia 1 de outubro e que altera o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, o primeiro que tem como objeto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e o segundo que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
A lei define como seu objetivo clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade.
Não nos parece, contudo, que o resultado final do texto legislativo seja, assim, tão clarificador e, pelo contrário, vem trazer ainda mais incertezas na aplicação da lei.
Nos termos do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 30/2020, que procedeu à descriminalização do consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contraordenação” e, nos termos do n.º2 “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
O legislador definiu claramente a fronteira entre o crime e a contraordenação em função da quantidade detida. Isto é, se excedesse a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias era o crime de consumo, previsto no artigo 40º, n. 2, do DL 15/93, se não excedesse era apenas uma contraordenação.
Assim, perante a apreensão de uma quantidade inferior àquele limite, a autoridade policial comunicava imediatamente o auto de notícia e apreensão à comissão para a dissuasão da toxicodependência para efeito de desencadear o procedimento contraordenacional.
Com as alterações introduzidas pela Lei 55/2023, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefaciente, independentemente da quantidade que o agente detenha, apenas integra a prática de uma contraordenação.
Sendo que a aquisição e a detenção que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias apenas constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo. Isto acarreta, desde logo, consequência práticas ao nível da atuação das autoridades policiais.
Perante a alteração em causa, parece-nos que independentemente da quantidade detida, o auto de notícia e apreensão tem sempre que ser comunicado pela autoridade policial ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal e, só após, no decurso do mesmo, se a autoridade judiciária (Ministério Público ou Tribunal), consoante a fase do processo, concluir pela inexistência de indícios suficientes de que a droga detida não é para consumo e proceder ao arquivamento, não pronúncia ou absolvição, é que determina o encaminhamento para a comissão para a dissuasão da toxicodependência.
Na verdade, com a alteração do n.º 2 do artigo 2º da Lei 30/2020, e constituindo o critério do consumo médio individual durante o período de 10 dias apenas um indício de um propósito diferente do consumo??, parece-nos que o legislador deixou cair a presunção de consumo até agora prevista e resultante daquela lei, que permitia às autoridades policiais, desde logo, encaminharem o auto de notícia para a CDT.
Tal vai provocar um elevado grau de incerteza nas autoridades policiais quanto ao modo de procederem nestas circunstâncias e determinar que pessoas a quem seja apreendida quantidade diminuta de droga, e que claramente são consumidores, sejam arrastados para o sistema judicial, quando podiam e deviam ser imediatamente encaminhados para a CDT para o seu acompanhamento.
Por outro lado, vai retardar excessivamente a intervenção da CDT, nestes casos, com prejuízos óbvios para a proteção sanitária e social dos consumidores.
Este é um exemplo claro de uma lei que no objetivo visava clarificar, mas que no resultado só vem mesmo complicar!!
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