“Se a natureza humana não fosse vil, mas inteiramente honrada, não deveríamos, em nenhum debate, ter outro objetivo que não a descoberta da verdade.” A frase foi escrita pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer sem suspeitar de que, dois séculos passados, ela seria tão profética. Até pela conclusão que ele lhe deu, após culpar a vaidade inata pelo facto de raramente nos permitir admitir, durante uma troca de argumentos, que a nossa posição inicial estava errada e a do nosso adversário pode estar correta: “Numa discussão, por uma questão de vaidade, o que é verdadeiro deve parecer falso e o que é falso deve parecer verdadeiro.”
O que Schopenhauer nos queria dizer, nesses tempos em que os debates se limitavam ao uso da oratória, é que se pode ganhar uma discussão sem precisar de se ter razão. E que há muitos truques para isso, que ele elencou na obra A Arte de Vencer Uma Discussão sem Precisar de Ter Razão (agora, em boa hora, reeditada em Portugal). São estratagemas que nós conhecemos e que depressa identificamos no espaço público, mas que ele estruturou há mais de 200 anos.
Algumas dessas técnicas são hoje usadas até à exaustão e, por isso, vale a pena enunciá-las: irritar o adversário; escolher metáforas favoráveis à nossa proposta; reivindicar vitória apesar da derrota; interromper e desviar a disputa; tirar as suas próprias conclusões; responder com um contra-argumento tão mau como o do adversário; tornar o ataque pessoal, ser insultuoso ou rude.
Até um observador distraído percebe que estas sete regras (das 38 postuladas por Schopenhauer) fazem parte da cartilha habitual da maioria dos populistas – ou dos seus aprendizes. E são usadas com a mesma frequência ou exaltação, de forma indiferente, tanto nos debates políticos como nas discussões sobre futebol (até porque as linhas de fronteira, em termos de retórica, são cada vez mais difusas). Mas o que Schopenhauer nunca poderia ter imaginado, há dois séculos, é a variedade de ferramentas que atualmente está à disposição de qualquer pessoa para tentar ganhar um debate no espaço público… só para satisfazer a sua vaidade inata: a capacidade de inventar factos, de construir verdades, de criar realidades aparentemente irrefutáveis.
Os atuais instrumentos de Inteligência Artificial (IA) atiram as toscas fake news, ainda de memória fresca, para o terreno de uma brincadeira de crianças no recreio de uma escola primária. Agora, os factos são inventados e tornam-se virais à velocidade da luz (em 5G, claro). Quem é que, nem que fosse por um segundo, não acreditou que a imagem do Papa Francisco com um casaco branco almofadado era mesmo verdadeira? Ou quem não deu por verdadeira, mesmo que por instantes, a foto de Donald Trump a caminhar, de ar heroico, em direção ao tribunal de Nova Iorque, com uma multidão de apoiantes a segui-lo?
Esse tipo de manipulação de imagens, que, até há pouco tempo, estavam apenas ao alcance de meia dúzia de especialistas, encontra-se, através das ferramentas de IA, à disposição de qualquer pessoa – e acessível para as ajudar a ganhar os debates. A tecnologia existente chegou a um ponto em que nos obriga a duvidar, em permanência, sobre o que é verdadeiro ou falso. Já há ferramentas que conseguem, em segundos, pôr alguém a dizer o que ele nunca disse ou a “clonar” uma pessoa para situações comprometedoras, como se fossem realidade. Com a manipulação exaustiva e ao alcance de todos, qualquer imagem deixa de ser a prova de um acontecimento e até um discurso pode ser truncado para que um adversário apareça a dizer o contrário do que tinha dito.
Nesta realidade, até as fontes confiáveis perdem a… confiança. Nos últimos dias, os editores do britânico The Guardian descobriram que, por exemplo, uma notícia do seu jornal andava a ser utilizada como fonte pelo ChatGPT, com aquele valor de “notícia”, de que não duvidamos. Só que, na verdade, esse artigo nunca existiu – tinha sido completamente inventado.
Num mundo em que a mentira se torna mais fácil e acessível, como vamos passar a descortinar o que é verdade? Essa é a resposta que nos desafia a todos.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ A crise da Habitação exige melhores cidades