O despacho de pronúncia do juiz de Instrução do Processo Marquês demoliu (quase) totalmente as alegações da acusação: dos 31 crimes imputados a José Sócrates, apenas seis – três por branqueamento de capitais e três por falsificação de documentos – se mantêm. Mas a corrupção, que caiu do processo judicial, não caiu do caso político: Ivo Rosa produz uma afirmação de enorme importância, com mais implicações políticas do que jurídicas. Pela primeira vez, um magistrado afirma que um primeiro-ministro foi corrompido. Ainda que esta conclusão não tenha quaisquer efeitos práticos, o juiz, a propósito dos “donativos” – deixaram de ser “empréstimos”… – de Carlos Santos Silva a José Sócrates, afirma que eles configuram um caso de “corrupção passiva sem demonstração de ato concreto”. Não obstante o facto de este ser um crime com uma moldura penal suave e, ainda por cima, já prescrito, isto acaba por ser uma proclamação para a História.
Trata-se, todavia, de um fraco consolo para o Ministério Púbico (MP) e de uma triste explicação para os portugueses. A corrupção não vai a julgamento (pelo menos, até que a Relação aprecie o recurso do MP). E o outro grande notável, Ricardo Salgado, será julgado por um crime relativamente menor – abuso de confiança. A decisão de Ivo Rosa terá implicações jurídicas que não cabe neste espaço analisar. O que nos interessa aqui é saber que implicações este rato tão pequeno, “parido” por tão grande montanha, terá no sistema democrático, no que diz respeito a três dos seus pilares: a política, a Justiça e o jornalismo independente (vulgo “quatro poder”, depois do legislativo, do executivo e do judicial).
Muito se falou sobre o terramoto político e judicial que, fosse qual fosse a decisão, este caso iria provocar. Se, por absurdo, um juiz como Ivo Rosa tivesse assinado de cruz a acusação do Ministério Público, teríamos em perspetiva, para além do julgamento de algumas pessoas, o julgamento do poder político e da sua relação promiscua com o poder financeiro, relativo a um período de seis anos de Governo, de um partido que, com muitos dos protagonistas de então, incluindo o primeiro-ministro, António Costa, voltou – e está no poder. Se, ao contrário, Ivo Rosa tivesse arrasado tudo – como quase aconteceu… – teríamos, e, provavelmente, teremos, uma reação na sociedade que ameaça reconfigurar, de alto a baixo, o nosso sistema democrático. Depois de Sócrates, os principais beneficiários são os extremos anti sistema e, entre eles, o agente político mais organizado no terreno: André Ventura. Esta sexta-feira, no Campus de Justiça, em Lisboa, por cada crime que caiu, umas dezenas de milhares de votos podem ter-se transferido para o Chega. Este risco, só por si, não justificaria o julgamento e, muito menos, a condenação de um inocente. Mas é preciso analisar como este risco foi construído. E quem foram os seus “construtores”. É que, para muitos portugueses, que, depois da narrativa informativa dos últimos sete anos, consideram incompreensível este desfecho, fica a convicção de que os poderosos se “safam” sempre. Que a retirada do processo ao justiceiro Carlos Alexandre foi cirúrgica. Que a Justiça não funciona. Que o regime está podre e corrupto. Que já não é reformável. Para quem deseja uma 4.ª Republica, seja lá isso o que for, isto foi sopa no mel.
Se Sócrates estivesse indiciado por ter assaltado uma velhinha ou por ter dado um tiro a um jornalista incómodo, poderia dizer-se “à Justiça, o que é da Justiça, à política o que é da política”. Mas ele foi indiciado por crimes cometidos no âmbito de titular de cargo politico. O cargo mais importante do poder executivo
Vale a pena, a este respeito, relembrar as palavras de António Costa, proferidas logo a 22 de novembro de 2014, uma semana antes de, em congresso, ser entronizado como secretário-geral do PS, e reiteradamente reafirmadas: “À política o que é da politica, à Justiça o que é da Justiça”. Ora, como diria o nosso primeiro-ministro, “vamos lá a ver”: se José Sócrates tivesse sido acusado de violar uma velhinha nas escadas do edifício da Rua Brancaamp; se tivesse sido apanhado sem carta de condução e com dois gramas de álcool no sangue; se tivesse dado um tiro num jornalista incómodo, esta tese seria perfeitamente aceitável. Mas não: os crimes imputados a José Sócrates, na sua maioria, teriam sido cometidos no quadro das suas decisões políticas, no âmbito de líder partidário e titular de cargo político. E mais: um cargo que é o mais alto na cadeia dos órgãos de soberania executivos. É claro – e aqui o próprio Sócrates, embora por motivos diversos, tem toda a razão… – que se trata, para todos os efeitos práticos e sociais, de um caso indissociável da política. E é por isso que o caso está, desde o início, inquinado pelas “claques” de um lado e de outro. Mas à atuação de Costa, em todo este processo, já voltaremos.
Voltemos, agora, ao tema da erosão do regime e do benefício dos seus críticos populistas: quem tem responsabilidade por estes riscos? José Sócrates, descontando-se as eventuais culpas criminais que tenha (mesmo que algumas não tenham sido confirmadas nesta decisão) será, no que diz respeito a este tsunami institucional, o menos culpado. A questão central é outra. O problema não foi só a da não corroboração de Ivo Rosa das teses do MP: o problema foi como o fez. “Fantasia”, “especulação”, “presunção”, “falta de lógica”, são expressões fortes, com que caracterizou, sistematicamente, e ponto por ponto, o trabalho do MP. Ainda que – e já lá iremos – o próprio Ivo Rosa possa ter excedido as competências que se pedem a um juiz de instrução, das suas palavras alguma sensação de desconforto, relativamente à competência da investigação, em Portugal, se pode retirar. Em muitos pontos, segundo Ivo Rosa, o MP terá revelado incompetência, amadorismo, falta de isenção e pura preguiça. A opinião pública e o senso comum desconfia de que as teses do MP serão, em muitos casos, verdadeiras. Por isso mesmo, seria ainda mais frustrante poder concluir-se que os poderosos poderão “safar-se”, não pela conivência dolosa da Justiça, mas pela sua incompetência.
As sucessivas fugas de informação orientadas, as narrativas coladas a cuspo (incluindo a de Sócrates), as entrevistas de arguidos, advogados e juízes (Carlos Alexandre) e a atitude passiva de alguma comunicação social, que, em diversos momentos, se limitou a ser pé de microfone de uma ou outra parte, ajudaram, primeiro, a formar na opnião pública um conjunto de convicções que nenhuma decisão judicial poderá, agora, modificar – e, depois, a descredibilizar todos os agentes: MP, “TICÃO”, políticos, Justiça e regime.
Uma metáfora muito citada recentemente (José Gomes Ferreira, na SIC) segundo a qual, para além da prova, há os factos evidentes – e o que nos foi dito, sem contestação possível, sobre o estilo de vida de José Sócrates, é um facto evidente… -, fala de “chuva” e de “ruas molhadas”: podemos não ter visto chover, mas se saímos à rua e os carros estão molhados e há poças de água no chão, então, choveu. (Uma imagem muito próxima de outra, a fundamentar uma decisão judicial, algures durante este processo, em que um magistrado se socorria de um ditado popular, dizendo, relativamente a Sócrates, que “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”). Voltando à “evidência” de que uma rua molhada indica chuva: esta conclusão, por ser inócua, além de lógica, não prejudica ninguém. Mas se, em causa, estivesse a liberdade ou a reputação de pessoas, a primeira coisa a fazer, antes de afirmar que choveu, seria telefonar para a Câmara Municipal e perguntar se, por acaso, àquela hora, não terá passado por ali nenhum autotanque de lavagem de ruas. Se a resposta fosse negativa, inquirir o IPMA, para saber se havia registos de precipitação. E assim sucessivamente. E, só com toda a certeza se poderia afirmar que choveu. O que parece é que, em vários pontos da acusação do Processo Marquês, o MP não fez o “telefonema para a câmara”.
Um trio de perplexidades: Uma, Ivo Rosa terá julgado mais do que instruído. Duas, valorizou uns testemunhos e descredibilizou outros. Três, enredou-se nas mesmas “suposições” que criticou ao MP
Ainda assim, há várias perplexidades com que ficamos, após ouvir as mais de três horas de comunicação de Ivo Rosa. Vamos a elas.
Primeiro: enredou-se em considerações idênticas às que critica na acusação, com “suposições” ou “deduções” não devidamente justificadas. Sobretudo, na parte do processo que diz respeito à Portugal Telecom – e ele não se interroga, por um minuto, como foi possível destruir daquela maneira uma das empresas portuguesas de maior valor… – e ao negócio no Brasil. Nomeadamente, na parte das supostas influências entre Sócrates e Lula ou outros responsáveis brasileiros. Ivo Rosa utiliza expressões como “não parece provável” “dificilmente terá acontecido” e outras que indiciam que ele próprio está a deduzir, a supor e a especular. Na dúvida, e como um juiz de instrução não julga, apenas analisa indícios, deve deixar seguir para julgamento, salvando, portanto, “melhor opinião”.
Segundo: valorizou uns testemunhos e desvalorizou outros. Citou, frequentemente, os depoimentos de figuras próximas de Sócrates – o amigo, vários ministros, diversos assessores, para fundamentar a sua convicção. Mas desvalorizou outros, de que nem fala. Todavia, fala do segundo depoimento de Helder Bataglia, que confirmaria uma das teses do MP. Ora, a ideia de que o facto de uma testemunha modificar o seu depoimento pode colocar em dúvida a sua credibilidade, como Ivo Rosa insinuou, é perigosíssima: então, por que se aceita que as testemunhas o façam? Para além do resto, esta alegação de Ivo Rosa abre um precedente grave para futuros processos. Depois, insinua, sem qualquer tipo de fundamentação, que Bataglia poderá ter mudado a sua versão em troca de um tratamento mais favorável na sua medida de coação. Esta é uma posição suscetível de colocar em causa a crediblidade do despacho de pronúncia. A hipótese ofende todos os envolvidos: a própria testemunha, a investigação, a magistratura. Há que lembrar que a delação premiada não existe, em Portugal.
Terceiro e último: muitas, se não a maior parte das conclusões de Ivo rosa – e já falámos do caso da PT no Brasil – são mais as de um juiz que julga do que as de um juiz que apenas faz a instrução. O tom com que arrasa quase todas as teses do MP, independentemente da sua fundamentação, é a de uma decisão “transitada em julgado” e, frequentemente, não uma análise de indícios.
José Sócrates entrou em rota de colisão com António Costa, desde o início e, depois, com o PS. Mas o “embaraço mútuo” ainda não acabou
A 21 de novembro, Sócrates foi detido, em direto, no aeroporto de Lisboa, e passou dez meses em prisão preventiva, antes de, a 4 de setembro de 2015, ter visto a prisão preventiva ser revertida para prisão domiciliária. Cumpriu-a numa residência lisboeta, na Rua Abade Faria, à Alameda Afonso Henriques. Foi só uma das muitas ironias pitorescas desta novela, que inclui uma “pulga de estimação”, no presídio de Evora, excursões de autocarro para levar os “evangélicos do profeta” a manifestações de apoio à porta da prisão, fotos de um jantar socrático com ténis de marca. Com efeito, o clérigo e cientista português José Custódio de Faria ficou conhecido por Abade Faria, o que faz dele um homónimo da personagem de ficção que acompanha, na prisão, o Conde de Monte Cristo, no célebre romance de Alexandre Dumas (pai). Neste caso, o título nobiliárquico é o de “Marquês” mas, naqueles meses de romarias a Évora – Mário Soares, Fernando Gomes, António Guterres, Pinto da Costa… – nem sempre a nobreza imperou. A 31 de dezembro de 2014, véspera de Ano Novo, com o País distraído pelas Festas, o arguido recebeu uma visita muito especial: a do secetário-geral do PS, António Costa, seu ex-ministro e camarada de partido. O novo líder da oposição e candidato a primeiro-ministro diria, à saída, que José Sócrates estava a defender o que entendia “ser a sua verdade”. Uma declaração sibilina que deixou Sócrates furioso.
A conversa já tinha corrido muito mal. Para além de algum desdém pessoal pelo novo líder do seu partido – “o Costa veste-se muito mal”, costuma comentar Sócrates, em privado… – subsistia o facto de o PS não estar disposto a defender o antigo chefe do governo. Separação entre política e justiça foi sempre, neste caso, um argumento muito mal aceite pelo principal arguido da Operação Marquês. Depois da constituição de um seu ex-ministro, Manuel Pinho, como arguido num outro processo (EDP), figuras importantes do PS, viriam, em 2018, a classificar o Processo Marquês como “uma grande vergonha” para o partido (Carlos César então presidente do PS), causadora de “grande revolta”, tanto mais que “envolve um antigo primeiro-ministro socialista”. Outros, como Augusto Santos Silva, também aproveitavam para descolar. Por esta altura, não só já ninguém telefonava a Sócrates, como poucos, no PS, lhe atendiam o telefone. Tirando as suas próprias conclusões, José Sócrates abandonou o partido, para evitar “uma situação de embaraço mútuo”, aproveitando para arrasar a “cobardia e hipocrisia” de alguns dos seus antigos camaradas. Mas o “embaraço” regressa, em força, com o impacto da corrupção (prescrita), mesmo que “sem demonstração do ato concreto”. É um primeiro-ministro socialista. Já não é justiça (não será julgado por isso) mas passa a ser política.
No processo político, durante este período, causou grande turbulência a não recondução da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, responsável máxima por todos estes processos “embaraçosos” (seguindo a expressão de Sócrates…). Nos últimos tempos, incomodado pelo atraso na instrução do caso, Marcelo Rebelo de Sousa fez depender a abertura do ano judicial da conclusão da instrução do Processo Marquês, de uma vez por todas. E o seu antecessor, Cavaco Silva, veio dar uma espécie de mote ao PSD, denunciando a alegada “democracia amordaçada”, depois da polémica da nomeação do procurador europeu e do caso da substituição do presidente do Tribunal de Contas. No plano da discussão mediática, contrariando Costa, à política o que é da política e à política o que é da justiça, portanto.
Os partidos já vão tarde, mas devem fazer alguma coisa, já. Há evidentes deficiências na lei, em matéria de combate à corrupção
Isto porque os agentes e os protagonistas contam: aliás, basta pensar que, com a atribuição da instrução a Ivo Rosa, Sócrates respirou de alívio: ele tinha a perceção de que, onde o Ministério Público dizia “mata”, o juiz Carlos Alexandre dizia “esfola”. Com as milhares de páginas do processo, Ivo Rosa prolongou, até esta sexta-feira, o trabalho de instrução, decidindo tornar a sua decisão o mais transparente possível. Não só não permitiu fugas, durante a fase em que teve a responsabilidade pelo processo, como fez questão de explicar a decisão, em direto, perante o País. Independentemente dos eventuais erros de avaliação que, ao apreciar o recurso do MP, a relação lhe possa imputar – e é previsível que o faça – deve elogiar-se esse esforço de pedagogia.
Mas a exigência de melhor prova, no plano em que Ivo Rosa a coloca, pode tornar virtualmente impossível o julgamento e punição do crime de corrupção em Portugal, prejudicada, ainda mais, como se percebeu, pelos prazos ridículos de prescrição. E isso, para além do preço político que todos pagaremos, vai exigir, por parte da opinião pública, uma “cobrança legislativa” aos partidos representados na Assembleia da República. Que devem fazer alguma coisa, já. Cá estaremos para ver.