Passados dois meses do fecho do Hall Maximilian, voltámos a abrir portas num novo centro de refugiados em Bruxelas. Os voluntários fazem-se ao trabalho, de energias renovadas, prontos para a etapa seguinte neste sonho de integrar aqueles que chegam à procura de paz na Europa, e também eu estou de volta para contar as suas histórias.
O meu amigo Hussein, o músico refugiado, está a ficar famoso em Bruxelas. Deixei de o ver sem ser em palco, ou nos minutos a seguir, quando bebemos um copo à pressa, porque ele tem de dar entrada no centro onde dorme antes da meia noite. Na semana passada, quando chegou ao quarto, encontrou uma carta do centro de imigração. Abriu-a, inquieto, na esperança de novidades sobre o seu processo, e deparou-se com uma sugestão de regresso voluntário ao Iraque, vinda do secretário de Estado belga para a Imigração e Asilo, Theo Francken.
No mesmo dia, todos os iraquianos requerentes de asilo na Bélgica tiveram a surpresa de ler o mesmo texto de argumentação estruturada, em tom intimidante, e de uma demagogia chocante. O governo conta com o estado de fragilidade psicológica em que a maioria destas pessoas se encontra para expulsar “voluntariamente” o maior número de refugiados.
Ora, apesar de todo o esforço das ONGs locais para difundir informação sobre o processo de obtenção de asilo, grande parte dos refugiados habita em centros isolados, longe da capital, ignorando detalhes essenciais sobre os seus direitos no país de acolhimento. Desconhecem que todos têm acesso a uma assistente social no centro, poucos sabem que teriam direito a um advogado, a partir do momento em que pisam o solo belga. A confusão, seguida de pânico e revolta, foi atenuada pelas várias mensagens de apoio e esclarecimento nas redes sociais.
Nesta carta, um curto texto redigido em árabe, Theo Francken argumenta que a espera é cada vez mais prolongada, devido ao enorme fluxo de refugiados dos últimos meses; que o direito de asilo é temporário e difícil de obter, pelo que o demorado processo poderá provavelmente terminar com uma resposta negativa; que é importante pensar na família e no lar, na terra de origem, até porque o Iraque é considerado uma zona de paz; e, finalmente, que o Estado belga oferece 500 euros de subsídio a todos aqueles que optarem pelo regresso voluntário. O governo belga remata avisando que os que receberem uma resposta negativa deverão abandonar imediatamente o país ou permanecer em centros fechados a aguardar que as autoridades tratem da sua deportação.
Hussein encolhe os ombros, estupefacto. Acha indecente que, depois de tudo o que passou para aqui chegar, lhe seja subtilmente sugerido que pense no que deixou para trás e faça as malas, que o governo trata de tudo o resto. “Eu não vou a lado nenhum”, escreveu no Facebook, “a minha casa é aqui”.
As pessoas que Theo Francken ameaça e tenta aliciar com 500 euros fugiram da guerra, arriscaram a vida na estrada e no mar, gastaram todas as economias para chegar à Europa, e não conhecem a lei, a cultura e a língua dos nossos países. Muitas estão em condições físicas e mentais frágeis. É triste saber que o desespero da classe política europeia, incapaz de encontrar soluções construtivas e eficazes, chega a este nível de falta de humanidade, jogando com quem não tem cartas na mão, senão as de contar os seus motivos de fuga e aguardar uma hipótese de futuro.
Desde o início de maio, morreram já mais de cem pessoas em atentados bombistas em Bagdade, juntando-se às mais de setecentas do mês passado. No Iraque, um país sem guerra, segundo o governo de Bruxelas.
Na quarta-feira de manhã, saí do centro à pressa para me ir juntar a um protesto organizado por refugiados iraquianos no jardim diante do centro de imigração da capital belga. Revoltados por esta afronta ao direito universal de asilo, mais de trezentos iraquianos uniram-se no relvado do parque Maximilian. Foi este o parque que deu nome ao nosso centro e que em setembro acolheu um campo espontâneo de refugiados, erguido por cidadãos, para dar teto aos milhares que chegaram à paz chuvosa de Bruxelas. E que agora se defrontam com este atentado do governo dos belgas.
O grupo que organizou a manifestação redigiu um comunicado e fê-lo circular pelas redes sociais. “Viemos para o país dos direitos humanos, à procura de paz, fomos recebidos com ameaças e hostilidade direta para com os iraquianos. Todos os dias no Iraque há pessoas a serem massacradas, presas, mortas e torturadas. Fugimos do terrorismo e da incapacidade do nosso governo para o combater. Pedimos humanidade, paz e compreensão.”
Passado uma hora, a polícia mandou dispersar. Os belgas e os europeus, como eu, fomos para casa e os refugiados para os centros, para a espera sem esperança. A Europa está a perder a cabeça.