Depois de uns tempos em Lisboa, estou de volta a Bruxelas e à crise de refugiados, ao coração de uma Europa que continua a sucumbir ao medo e a fechar fronteiras, que resiste a tomar decisões sérias e concertadas. Estou de volta à realidade e ao sonho, à integração e à espera, à esperança e ao vazio, à desilusão de saber que isto não está a melhorar. Nem nada que se pareça.
A chegada do inverno atenuou as dimensões dos fluxos migratórios, a maioria dos refugiados está já distribuída por centros de acolhimento em toda a Bélgica e há uma ilusão no ar de que o problema terminou, por passar despercebido. A espera pelo direito de asilo é uma realidade desesperante, que se tornou numa prisão para todos aqueles que chegaram à Europa nos últimos meses. Os refugiados não podem estudar, nem trabalhar, muitos habitam em campos longe das grandes cidades, deslocam-se a Bruxelas para vir ao centro de imigração, sujeitos ao provável adiamento da entrevista. Estão isolados na incerteza de receber um papel que lhes trará a liberdade. A única oportunidade que têm de recomeçar, de ter uma vida.
O campo de refugiados do Hall Maximillian vai fechar no fim do mês. Um grande placard que se avista da Gare do Norte anuncia a construção de um complexo de apartamentos de luxo – Urban Modern Living – no edifício onde vi tantos sonhos desfeitos, mesmo com esperança nesta espera insuportável. E que vai continuar. Porque está tudo na mesma.
Fui recebida com abraços e olhos brilhantes, tantas perguntas e tão poucas respostas. Quis saber como estavam a correr os processos. A espera continua para a maioria dos que atravessaram o Mediterrâneo para aqui chegar. Abracei fortemente os três rapazes que já receberam o direito de asilo. Estou de volta, sorri-lhes, com esperança de que mais se juntem a esta próxima fase: a integração.
O Geil, o Adam e o Oda fugiram da guerra e da violência. Meteram-se em barcos à procura de uma vida e atravessaram uma Europa hostil, para encontrar um novo lar. Hoje sorriem e sonham mais alto. Precisam agora de lutar contra uma sociedade que não os vê com bons olhos. Temos andado pela cidade à procura de apartamentos, antes que termine o período de dois meses de que dispõem para ficar nos respetivos centros de acolhimento. A maioria dos senhorios recusa-se a alugar apartamentos a refugiados e a residência fixa é um dos critérios necessários para a entrega dos documentos de permanência legal. O preconceito e os procedimentos burocráticos prolongam a incerteza dos seus sonhos. Querem estudar e trabalhar, deixar-se de apoios, mantas, sopas e sanduíches. Querem começar de novo e ter uma vida. Mas isto está longe de ter acabado.
No Hall Maximillian, passámos a serviços mínimos, já não há aulas nem roupas e os Médicos do Mundo passam cá pouco tempo. “Não te deixes iludir por este vazio. Precisamos de um novo edifício”, diz-me Sami, o coordenador do departamento de apoio jurídico, que está a funcionar a todo o gás. “Eles precisam de nós, as estruturas estatais não funcionam, os advogados atrasam os processos, a situação continua insustentável”.
Sami começou a trabalhar nisto em 1998, ano da primeira vaga de refugiados iraquianos. Veio de Marrocos aos dezoito anos para estudar em Bruxelas, falava fluentemente francês e árabe, apercebeu-se de que os seus vizinhos, vindos do Iraque, estavam embrulhados em burocracias e processos legais para obter o direito de asilo, e resolveu começar a ajudá-los. Pesquisou e estudou a lei para a aplicar na prática. Desde esse momento nunca mais deixou a atividade paralela à sua vida: ajudar imigrantes na lei e na sociedade, dar apoio moral e jurídico. Fá-lo com um grande profissionalismo, calma e descontração.
Mal cheguei ao campo, fui logo raptada por ele. Precisava de um intérprete para falar com uma senhora afegã em inglês. Alertou-me, como de todas as vezes em que entrei naquele escritório, de que tudo o que ali é dito deverá ser mantido em sigilo absoluto. No fim da reunião, ficámos a conversar sobre o estado das coisas. Disse-me que é preciso ter presente que este trabalho não está concluído. Os pedidos de ajuda chegam todos os dias ao seu escritório, até os assistentes sociais do Estado já enviam casos diretamente para ele. Recorda-me que para não esmorecer basta observar as expressões daqueles que chegam, ler os seus olhos vazios de cansaço, esgotados pela vida e pela burocracia, por leis migratórias restritivas, pela sociedade que os discrimina, pela viagem, pelas saudades de quem lá ficou… Não tenho boas notícias.
Ao mesmo tempo, o preconceito em relação à população muçulmana aumenta em toda a Europa, a islamofobia assume-se como um novo grande desafio da nossa era e que é preciso, através da razão e do bom senso, combater. Pude ler, nas expressões dos senhorios, o pânico, quando apertaram a mão ao seu potencial inquilino, acabando desde cedo por deixar claro que o contrato nunca se iria estabelecer.
Precisamos de integrar os refugiados, não só porque eles estão em perigo. Também por nós. Acredito que as populações europeias precisam de abrir a mente, de trabalhar na inclusão da multiculturalidade como forma de riqueza imaterial e, mais do que tudo, deixar de temer o desconhecido. O medo obstrui o conhecimento e é a falta de conhecimento a sua principal fonte de alimentação. Pessoas informadas e habituadas à diferença promoverão a solidariedade e a integração nos países que se uniram em nome da paz e da liberdade.
Entretanto pôde provar-se que não havia refugiados desta vaga entre os agressores de Colónia, o que são boas notícias, não tendo, porém, impedido a distribuição de panfletos por todos os campos de refugiados na Bélgica, com regras de conduta moral.
É este medo da subversão dos nossos valores que me leva a pensar que a própria Europa desconfia da força dos seus princípios fundadores. Antes de podermos partilhar a nossa cultura com os povos que procuram um recomeço para as suas vidas, deveremos talvez relembrar internamente os princípios fundadores do projeto europeu, para que nos possamos orgulhar deles e mantê-los, num ambiente mais rico de multiculturalidade.