Sempre fui uma pessoa saudável. Deixei de o ser a 19 de dezembro de 2019, quando me senti com dores de garganta e sintomas de gripe. Era muito raro adoecer. Nesse dia, a vida mudou radicalmente – para mim e para a minha família.
Lembro-me de não ir trabalhar porque me sentia mesmo mal e de ter desmaiado a meio da tarde, sozinho em casa. Por sorte, a minha mulher, Joana, chegou mais cedo do trabalho e percebeu que alguma coisa não estava bem. Depois de ter ido buscar a nossa filha Maria Inês à escola e de me ver na cama, a transpirar muito e com imensas dores, teve de tomar decisões rápidas. Chamou a ambulância e, em menos de nada, num dia em que chovia torrencialmente, chegámos ao Hospital de Vila Franca de Xira, onde fui submetido a inúmeros exames.
Tenho poucas memórias desta fase. Era à Joana que explicavam o que estava a passar-se, ela, que está sempre dois passos à minha frente e que assim continua… até hoje. Disseram-lhe que eu corria risco de vida e, caso sobrevivesse, poderia ter uma leucemia. Fui submetido a uma esplenectomia [retirada total do baço] e, poucos dias depois, fui transferido para os cuidados intensivos do IPO de Lisboa, onde foi confirmado o diagnóstico de leucemia mieloide aguda. Não tive noção da gravidade; acho que só comecei a ganhar consciência de como esta doença poderia ser grave e imprevisível no segundo tratamento de quimioterapia.
O primeiro internamento durou cerca de um mês. Lembro-me de dizer à Joana que já tinha estragado o Natal, como se esse fosse o maior problema de tudo o que nos viria a acontecer mais tarde. Passado todo este tempo, começo a perceber que fui encarando alguns contratempos e interiorizando as notícias conforme as situações iam acontecendo. Não houve tempo para processar o diagnóstico, sentir raiva, negação e até aceitação. Foi súbito, inesperado, e fugiu completamente do nosso controlo.
O transplante devolveu-me à vida e à saúde
No total, nestes dois anos e meio, terei estado internado cerca de 230 dias, com entradas e saídas recorrentes, próprias das várias fases da doença. Fui submetido a algumas transfusões de sangue e de plaquetas, e a Joana, que nunca tinha sido elegível para doação de sangue, conseguiu começar a fazê-lo – e tinha os valores adequados para avançar. Criou um grupo no Facebook, e vários amigos, familiares, colegas de trabalho de ambos, e até desconhecidos, passaram a doar sangue e até plaquetas. É importante destacar isto porque não era só eu a precisar, mas muitos outros doentes do IPO. Quando se diz que a doação permite salvar vidas, é mesmo assim. As necessidades são diárias.
Como se isto não fosse o suficiente, a 12 de março de 2020, começa a pandemia da Covid-19. E se já é duro estar internado, sem visitas, não tem explicação. Foram muitos dias e horas sem ver a minha família. Por vezes, as visitas aconteciam à janela.
No verão desse ano, acabei os tratamentos e passei alguns meses em que me sentia realmente bem. Fazia a minha vida praticamente normal, retomei as caminhadas e voltei a correr, com inúmeros cuidados, devido à preocupação com uma possível infeção por Covid-19.
A hipótese de transplante de medula esteve sempre em cima da mesa. A minha médica nunca se sentiu 100% confiante de que não fosse necessário. Entretanto, a doença voltou a dar sinal e a dúvida dissipou-se. Depois de vários exames e de ser encontrado um dador, o transplante aconteceu no dia 29 de agosto de 2021 e devolveu-me à vida e à saúde.
Há uma pessoa que vive nos Estados Unidos da América e que me salvou a vida. Mas não tenho – nem vou ter – qualquer informação sobre ela. Enviei uma carta através do IPO, não posso revelar dados pessoais, e estou a aguardar uma resposta. Não pode haver contacto direto entre o dador e o doente. A minha filha brinca e diz que “passou a ter um pai americano”. O meu tipo de sangue era o A- e agora passou a ser O+.
Fui transplantado há oito meses. Sinto que fui para o isolamento com o balão cheio de ar e com o pensamento de que tudo iria correr bem, mas assim que entrei no quarto comecei a sentir o balão a perder o ar. Seguiram-se dias em que fiquei ali fechado; só entravam as pessoas estritamente necessárias.
Ainda estou a recuperar do transplante e sem vislumbrar quando poderei voltar a trabalhar. Depois de ter alta, passámos a ter imensos cuidados em casa e, só para dar um pequeno exemplo, não posso ir a um restaurante ou encomendar comida. Tomo muita medicação, ainda que a mesma vá diminuindo aos poucos, e sou vigiado regularmente no IPO.
Desde que a minha filha nasceu, ela passou a ser a nossa prioridade, minha e da mãe, mas naquele momento em que estava no hospital, tive mesmo de me focar só em mim para poder ultrapassar isto. É claro que isso me custou muito, mas o facto de saber que ela estava bem e que contávamos com um forte núcleo familiar que resolvia tudo cá fora permitiu-me estar mais tranquilo. O facto de ter alguma estabilidade no emprego e de contar com o apoio de todos também foi essencial.
A Joana é um apoio fora do normal. Sem ela, tudo isto teria sido muito mais exigente. Quando regressei a casa, a dinâmica entre mãe e filha era qualquer coisa de extraordinário. Ainda estou por aqui a tentar reencontrar o meu espaço.
Conheci algumas pessoas que passaram pela mesma doença e que, infelizmente, não sobreviveram. Foram situações que me marcaram muito, e foi numa dessas perdas que precisei de procurar apoio psicológico porque senti uma grande desmotivação e tristeza.
Conto com a ajuda de uma psicóloga até hoje. Independentemente do que possa vir a acontecer, serei sempre muito grato ao IPO, onde fui muito bem tratado. Senti sempre medo. Acho que não é possível ter um cancro e não sentir medo. Mas confio e sigo em frente.