Os Artistas Unidos (AU) sempre se interessaram por David Greig (1969), o talentoso dramaturgo e encenador escocês vivo mais prolífico do teatro britânico, autor de meia centena de peças, para além de tradutor, guionista e libretista. Desta vez, a atenção dos AU recaiu sobre Europa (1994), num espetáculo notável, estreado no Teatro São Luiz, onde se apresentou de 18 a 29 de outubro, com encenação de Pedro Carraca. Está agora em digressão e pode ser visto, durante o mês de novembro, no Seixal, em Palmela, Barcelos, Covilhã e Évora.
A predileção pelo teatro de Greig é notória nas encenações de Lua Amarela também com encenação de Pedro Carraca, nomeado para o melhor espetáculo de teatro pela SPA, em 2022 e, em 2015, Os Acontecimentos encenado por António Simão e Frágil encenado por Jorge Silva Melo. Os AU publicaram, na coleção dos Livrinhos de Teatro, algumas das suas peças, para além de terem dedicado, em 2001, um número especial da Revista AU, ao “Teatro que vem da Escócia” e, nomeadamente, a David Greig.
A rica e variada obra de Greig e a evidente criatividade e imaginação, demonstra preocupações vivenciais sobre a ordem social e pessoal no contexto do nosso mundo global. O fascínio pela diversidade internacional, social, cultural e política dos povos e o anseio de ligação entre eles confronta-se com a xenofobia latente em cada um de nós, que conduz à insidiosa separatividade. Na escrita de esta Europa de David Greig, a Europa real confrontava-se então com a guerra nos Balcãs, após a dissolução da Jugoslávia, espoletando memórias fatídicas e o espanto sobre a capacidade humana de guerra e destruição, não tinham passado ainda nem 50 anos sobre o fim da segunda grande guerra mundial e sobre as promessas de paz. Os conflitos no mundo atual e as vagas constantes de desalojados de suas próprias casas e vidas torna esta peça ainda mais atual, pelo que se trata de uma escolha importante que os AU fazem a contribuir para a reflexão profunda sobre o binómio empatia/barbárie nas culturas hodiernas.
Neste espetáculo, Pedro Carraca confirma-se como um encenador de grande sensibilidade e profundo sentido ético da praxis teatral. No grande palco do Teatro São Luiz organizou com saber técnico e dramatúrgico as ações de um texto com simultaneidades de texto e ação. Numa terra de fronteira, numa europa central sem referência restrita, a fábula decorre entre a sala de espera de uma estação de comboios onde estes já só passam, mas não param e o único bar onde se reúnem os jovens desempregados. Um lugar onde a história parou e a que chegam refugiados vindos de outras guerras vai ser palco de cenas de xenofobia, a par da reflexão sobre a sua possível origem. De realçar a compreensão fundamental da duração hipnótica das cenas, a par de uma conceção realista e poética da componente plástica do espetáculo, numa cenografia portentosa de Rita Lopes Alves, a que a excelente iluminação de Pedro Domingos concede significação dramatúrgica.
A direção de atores é magnífica, porquanto a simultaneidade cinematográfica das cenas pressupõe tempos de resposta muito apurados, e movimentos e gestos deveras orquestrados. Essencialmente constituída por pares que se permutam entre si, a atuação permite criar o sentido de comunidade que se vai desfazendo à medida que a conjuntura económica se deteriora e as situações ideológicas se extremam. O comovente e compassivo par Américo Silva, em chefe da estação e Paulo Pinto, um refugiado cansado, representa a metáfora da empatia aqui simbolizada pelo amor aos comboios e pela fé na ética de valores. Igualmente impressionante o par constituído por Inês Pereira, a magnífica intérprete da ajudante do chefe da estação que sonha com terras distantes aonde nunca esteve, e Rita Rocha Silva, na rebelde e esquiva refugiada, em viagem de sobrevivência. Excecional a prestação a três vozes dos representantes dos jovens da terra: excelente Pedro Caeiro, Simon Frankel no conciliador e Gonçalo Carvalho, esplêndido na sua radical incompreensão do que acontece, reagindo por instinto. Finalmente Nuno Gonçalo Rodrigues, em contraponto fleumático do contrabandista bem-apessoado, vendendo charme e álcool ao desbarato sem cair no cliché.
Depois de admirarmos o espetáculo, a pergunta fica a pairar: Europa? J
› Europa
de David Greig, Tradução Pedro Marques, Com Américo Silva, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Nuno Gonçalo Rodrigues, Paulo Pinto, Pedro Caeiro, Rita Rocha Silva e Simon Frankel. Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves, Luz Pedro Domingos, Som André Pires, Vídeo Jorge Cruz e Nuno Barroca, Encenação Pedro Carraca. Coprodução Artistas Unidos e São Luiz Teatro Municipal.
Auditório Municipal do Seixal, no Festival de Teatro do Seixal, a 9 de novembro; Cine-Teatro São João, em Palmela, a 11 de novembro; Theatro Gil Vicente, em Barcelos, a 18 de novembro; Teatro Municipal da Covilhã, a 25 de novembro; Teatro Garcia de Resende, em Évora, a 29 e 30 de novembro