Mais de 40 mil mortos e de 10 mil desaparecidos. Este é o balanço de quase 14 meses de ataques do exército israelita à Palestina, a que se juntam cidades inteiras destruídas, incluindo hospitais e escolas, além de um sem número de deslocados.
Tudo isto apesar das resoluções das Nações Unidas e a condenação do Tribunal Internacional de Haia, que expediu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, sob acusações de crimes de guerra e contra a humanidade.
A Palestina luta pela sua libertação há mais de 75 anos, desde a criação do Estado de Israel. Esta escalada de violência teve como ponto de partida uma ação do Hamas, que fez cerca de duas centenas e meia de reféns e mais de um milhar mortos.
A resposta israelita provocou aquele que será muito provavelmente o maior massacre do séc. XXI. Entre os mortos, na esmagadora maioria civis, encontram-se mais de 10 mil crianças.
Sobre tudo isto falamos com Dima Mohammed, palestiniana, doutorada em Teoria da Argumentação e Argumentação Política, na Un. de Amesterdão, que vive em Lisboa há 13 anos. Depois de ter trabalhado também na Suíça e na Holanda, veio para Portugal, para trabalhar na Un. Nova, quando o laboratório de argumentação foi criado na Fac. de Ciências Sociais e Humanas.
Encontrámo-nos na Zaytouna, uma mercearia do Médio Oriente, no Mercado de Arroios, gerida por Hindi Mesleh, um outro palestiniano que vive em Portugal há quase uma década, que chegou a montar um pequeno festival de cinema palestiniano em Lisboa.
Estes são alguns dos rostos da resistência palestiniana em Portugal, movimento que tem ganho cada vez mais apoiantes, à medida que as imagens da tragédia que ocorre em Gaza nos chegam repetidamente pela televisão.
Em conversa com o JL, Dima diz que foi bem recebida em Portugal e que nota uma grande evolução nos movimentos de apoio à causa: “De início senti um apoio popular muito grande que não se repercutiu na política oficial. Sobretudo os mais velhos falavam da visita de Yasser Arafat a Portugal (1999) e faziam comparações com a revolução portuguesa. Nos últimos anos as coisas mudaram. Vejo muito mais ativistas a defender a causa palestiniana. Na Holanda e na Suíça era diferente, sentia uma acusação, uma hostilidade”.
Mas por que é que um elemento de um povo que está a ser massacrado haveria de ser ostracizado? A que se deve essa atitude noutros países da Europa? Dima explica: “Lá fora as pessoas precisavam de me dizer coisas, como ‘vocês têm que aprender a viver com os judeus’. E eu lá tinha de explicar que não temos nenhum problema com os judeus, que não é uma questão religiosa. O nosso problema é com a ocupação sionista. A Palestina também é dos judeus”.
Explique-se melhor, para desfazer equívocos: “A propaganda sionista espalha que o povo palestiniano está contra os judeus. É totalmente falso, uma deturpação e inversão da realidade. Somos um povo que luta pela libertação, por direitos iguais e pelo direito a viver na nossa terra.”
Em Portugal, diga-se, Dima não tem sentido esse tipo de hostilidade. O número de pessoas empenhadas na causa tem aumentado. Para Dima é claro: “Tornou-se óbvio que Israel está a tentar exterminar o povo palestiniano, pois nada justifica a escala de destruição. Não há casas, nem escolas, nem hospitais. O pretexto da autodefesa é obviamente uma mentira. E este genocídio está a acontecer com o dinheiro e o apoio do ocidente. Israel sozinho não tem armas, só pode fazer isto porque há armamento a vir continuamente dos Estados Unidos. A maioria dos governos europeus é cúmplice, pois permite a passagem das armas pelo seu território.”
E conta a história da sua família: “Os meus avós foram expulsos da sua aldeia na nakba de 1948, os meus pais foram expulsos da sua aldeia quando Israel ocupou o resto da Palestina (na Cisjordânia). Eu vivi a invasões da segunda intifada, e as múltiplas guerras contra Gaza, conheço bem a violência colonial sionista, mas nunca imaginei que íamos assistir a um genocídio, sem conseguir travar durante 14 meses”.
A Palestina também é dos Judeus
A palavra genocídio tem um grande peso para a comunidade judaica, que foi vítima do maior genocídio do séc. XX. Dima, no entanto, chama a atenção: “Faço questão de separar a comunidade judaica da comunidade sionista. Há sionistas não judaicas e judeus antissionistas. Os judeus antissionistas estão sempre a tentar combater a narrativa que confunde o sionismo com a religião judaica. Não permitem que o estado de Israel imponha uma ideologia racista, colonialista, a todos os judeus do mundo. Temos de ouvir a voz do coletivo português “Judeus pela Paz e Justiça” que, tal como o grupo americano Jewish Voice for Peace e outros em todo o mundo, tem vindo a repetir o slogan “não em nosso nome”.
Dima que, de resto, confessa-se ateia, e esclarece: “Tenho todo o respeito pelas religiões como prática cultural. Mas não tenho tolerância nenhuma para o uso da religião como prática política. Também sou contra os partidos islâmicos. Israel está a usar a religião como poder político. As primeiras vítimas (não em grau de gravidade) são as pessoas da mesma religião que não se identificam com a ideologia política. É uma ideologia discriminatória com base na religião que está a ser imposta a judeus contra a sua vontade. Por isso há quem considere o sionismo uma forma de antisemitismo.”
A verdade é que, apesar de tudo isto, há uma grande afinidade cultural entre todos os povos do mediterrâneo, mais ainda no lado oriental. Durante séculos, judeus, muçulmanos e cristãos viveram em conjunto, não só na Palestina, mas também em países como Iraque, Síria, Líbano, Irão, Egito.
Perante o está acontecer na faixa de Gaza, perguntamos a Dima o que os palestinianos no exílio podem fazer sobre o assunto “Temos de continuar a falar, desconstruir os mitos sionistas e pressionar para pôr fim à impunidade israelita. É um trabalho muito pesado. Não há nenhum país do mundo que tenha violado as leis internacionais, as convenções dos Direitos Humanos, as resoluções das Nações Unidas sem nenhuma consequência.”
Depois passa para algo mais concreto. “Não faz sentido que Israel faça parte de todos os acordos de colaboração da União Europeia. Quase todos os consórcios têm um parceiro israelita. Claro, há a história europeia e o sentido de culpa, mas depois de mais de 75 anos de uma ocupação colonial e de limpeza étnica, décadas de apartheid e um ano e três meses de genocídio, como podemos considerar Israel um estado que merece um estatuto especial?”
E faz um apelo para a adesão de mais empresas e instituições ao BDS (campanha internacional de Boicote, desinvestimento e sanções contra Israel), que foi lançada há 20 anos por 170 organizações da sociedade civil palestiniana, inspirada na luta contra o apartheid na África do Sul.
A cultura é uma arma
Como sempre, uma das formas de resistência tem sido a cultura. No último ano, Portugal tem recebido uma quantidade significativa de criadores palestinianos, nas mais diversas áreas, com diferentes programas em festivais, desde o LEFFEST, que fez uma programação especial dedicada à causa, ao Festival de Músicas do Mundo de Sines, passando pelo Indie, DocLisboa, Alkântara e muitos outras da área das artes visuais e performativas.
Dima diz: “Sempre houve eventos culturais com destaque para a Palestina. Por exemplo, o Festival Olhares do Mediterrâneo desde há 10 anos que tem sempre filmes e debates sobre o tema. Mas no último ano tem sido diferente. Faz parte da intenção das pessoas apoiar a causa. A cultura é um bom sítio por onde começar. Tem a ver com o papel dos artistas, a forma como lidam com a injustiça. A cultura é uma forma de resistência.”
E vai mais longe: “O projeto colonial sionista tem como objetivo último a aniquilação da Palestina. Israel tem feito tudo para apagar a Palestina do mapa. Tal está a ser feito com os ataques do exército e não só. Israel recusa-se a falar da Palestina, fala da Cisjordânia e de Gaza. E agora há membros do governo israelita a falarem da Judeia e Samaria. Manter a Palestina viva é um dos objetivos da resistência.”
E acrescenta: “Gostava que isto saísse da cultura e chegasse à política, para parar o genocídio. Mas fico feliz, porque o que a cultura está a construir é algo de longo prazo, uma narrativa alternativa, em que a Palestina existe não só como um país ocupado, um povo que sofre, que precisa de ajuda humanitária. Estamos a existir como um povo que tem uma história, artes, cultura, um povo que resiste e que vai sobreviver. A presença cultural da Palestina no mundo é gigante, apesar de décadas de ocupação. É uma resiliência enorme. E no mundo, há uma nova geração que percebe que a Palestina não é apenas o povo que sofre, mas também o povo que luta de todas as maneiras: através da arte, da ciência, da política e também da resistência armada. “
Queremos dignidade para que todas as pessoas na Palestina vivam com direitos iguais. Como é que alguém poderá dizer que não é legítimo? Temos um sonho muito lindo apesar da feia realidade que estamos a viver
No meio disso tudo há margem para esperança?, perguntamos-lhe. Dima responde citando o maior dos poetas palestinianos, Mahmoud Darwish: “O palestiniano sofre de uma doença incurável que se chama esperança”.
E continua: “Estes tempos são muito escuros. A chacina em Gaza, a limpeza étnica na Cisjordânia, o ataque de colonos. O futuro próximo não é de esperança. Enquanto o mundo não parar Israel, vamos assistir a mais vidas, cidades, aldeias a serem destruídas. Mas tenho muita esperança nos povos. Olhando para o que está a acontecer na cultura, nas universidades, vejo estudantes com uma clareza de visão. ‘Desde o rio até ao mar Palestina libertar’, gritam nas manifestações. Isto não é um grito para expulsar os judeus da Palestina como diz a propaganda sionista, isto é um apelo para que todas as pessoas que vivem naquela zona devem viver em paz, liberdade e com direitos iguais.”
E remata: “Queremos dignidade para que todas as pessoas na Palestina vivam com direitos iguais. Como é que alguém poderá dizer que não é legítimo? Temos um sonho muito lindo apesar da feia realidade que estamos a viver”