Os Jogos Olímpicos sempre foram muito mais do que uns simples… jogos. No seu renascimento, no final do século XIX, quando a Europa redescobria a arqueologia e a cultura helénica, após séculos de ocupação otomana, o barão Pierre de Coubertin imaginou-os como uma espécie de religião, que seria capaz de conduzir o mundo para a paz, graças à competição sã entre “atletas purificados” num “ambiente sagrado”.
Muito depressa, no entanto, os Jogos alienaram esse ideal universalista e tornaram-se, antes, num espaço de afirmação nacionalista. Como prova disso, logo na sua edição inaugural, em 1896, as primeiras Olimpíadas da era moderna ajudaram a consolidar o poder do rei Jorge I, de origem dinamarquesa, numa Grécia ainda abalada por uma longa guerra de independência e o caos de uma breve república.
O ritual nacionalista consolidou-se pouco depois, em Londres 1908, a primeira em que os atletas passaram a desfilar, na cerimónia de abertura, sob as bandeiras dos respetivos países. E, desde então, com cada acrescento a uma coreografia que procurou antecipar os sinais dos tempos, os Jogos passaram a ser, em todas as edições, um veículo privilegiado para a afirmação de poder de uma cidade ou de um país no concerto geral das nações.
Se houve alguém que percebeu a importância do fervor nacionalista nos Jogos Olímpicos foi o organizador dos Jogos de 1936, em Berlim. Mal chegou ao poder, Adolf Hitler chamou os líderes do Organisationskomitee (comité organizador), Theodor Lewald e Carl Diem, e disse-lhes que queria impressionar o mundo com a magnificência dos Jogos. E conseguiu-o: as instalações eram assombrosas, com um estádio de 110 000 lugares, uma piscina capaz de acomodar 18 000 espectadores.
Foram encomendadas estátuas a dois escultores para adornar as instalações com “figuras que exaltassem o físico ariano”. O compositor Richard Strauss escreveu uma música de propósito para as cerimónias protocolares. E, mais importante do que tudo, montou-se uma gigantesca máquina de propaganda destinada a difundir a “grandiosidade e magnificência” da Alemanha Nazi.
O mais curioso é que muito do que se fez nesses Jogos – tão criticados – continua a repetir-se nos dias de hoje, como a estafeta da chama olímpica, a transmissão pela televisão (embora ainda num circuito interno, mas que podia ser visível em grandes espaços públicos), e a criação, por Leni Riefenstahl, de uma estética atlética que ainda hoje dita normas e tendências.
A essa metamorfose nacionalista, já se de si relevante, foram-se acrescentando outras, com um impacto cada vez mais global. Durante algumas décadas, com e sem boicotes, os Jogos foram o campo de batalha ideal para duas superpotências se enfrentarem diretamente, perante uma audiência mundial, sem necessidade de recurso a armas – na Guerra Fria.
Em diversos momentos, os Jogos foram ainda determinantes para algumas cidades conseguirem operar transformações exemplares, graças a políticos com visão estratégica e que perceberam como o desafio de organizar uns Jogos Olímpicos pode ajudar a desbloquear a concretização de sonhos ambiciosos, deixando uma marca para o futuro, tanto no urbanismo, como no desenvolvimento desportivo – como ocorreu em Barcelona 1992 e em Londres 2012.
Em nome dos valores universalistas do desporto, uma máquina cada vez mais bem oleada consegue montar um espetáculo altamente atrativo e sempre irrepetível, pago a peso de ouro por grandes patrocinadores
Mas também serviram para, em nome de um orgulho desmesurado, alguns países e cidades envolverem-se em projetos faraónicos para as suas finanças públicas, deixando um défice orçamental muito maior do que o legado de prestígio ambicionado – como foram os casos, entre outros, de Montreal 1976 e de Atenas 2004.
A maior transformação – em todos os sentidos – ocorreu com os Jogos de Los Angeles que, em 1984, salvaram praticamente o movimento olímpico e abriram o caminho para elevar o projeto de Coubertin a um patamar diferente: um negócio global altamente lucrativo, com a construção de uma marca comercial de que todos os atletas e heróis dos estádios se tornam embaixadores planetários.
Em nome dos valores universalistas do desporto e dos slogans pela harmonia no mundo, uma máquina cada vez mais bem oleada consegue montar, desde então, um espetáculo altamente atrativo e sempre irrepetível, pago a peso de ouro por um conjunto restrito de grandes patrocinadores, confiantes de que a audiência global nos meios audiovisuais recompense o seu investimento.
Para não desperdiçar nenhuma oportunidade de negócio, desde o início da década de 90, os Jogos de Verão e de Inverno deixaram de se realizar no mesmo ano, de forma a que a palavra Jogos ecoe de dois em dois anos.
E, desde há duas décadas, acrescentou-se ainda ao “pacote” os Jogos Olímpicos da Juventude, para atletas menores de 18 anos, e que permite manter a “marca” ativa e, ao mesmo tempo, levar a organização a países mais pequenos, sem capacidade para o gigantismo dos outros – os próximos, por exemplo, serão em 2026 em Dakar, no Senegal – o primeiro país africano a receber um evento com a marca “Olímpicos”.
Perdoe-me o leitor este longo contexto histórico, mas considero-o essencial para permitir observar o fenómeno dos Jogos Olímpicos numa perspetiva abrangente, em todas as suas matizes e até em muitas das suas contradições. O movimento olímpico, recorde-se, agrega mais nações do que as Nações Unidas.
Nas cerimónias de abertura e de encerramento reúnem-se num mesmo espaço, os representantes de mais de duas centenas de atletas enviados pelos respetivos comités nacionais. E embora alguns países – geralmente os mais poderosos e populosos – ganhem mais medalhas, nenhum deles tem o direito de veto que lhes é concedido, por razões históricas já desatualizadas, no Conselho de Segurança da ONU.
Nas provas dos Jogos não importa a nacionalidade nem o PIB. Ganha quem corre mais rápido, quem atira mais longe, quem nada mais depressa ou quem salta mais alto.
E é essa justiça democrática, inerente ao desporto, que faz com que a participação nos Jogos Olímpicos seja um momento especial na carreira de qualquer atleta e que a conquista de uma medalha, em especial a de ouro, lhe dê quase uma dimensão de imortalidade. Por uma razão cristalina: foi ganha frente aos melhores dos melhores do mundo, reunidos todos num mesmo local e perante uma audiência global sem paralelo com qualquer outro evento ou competição.
Só nos apercebemos da verdadeira dimensão dos Jogos Olímpicos quando desembarcamos numa cidade em vésperas da chama olímpica ser transportada para o estádio – algo que tive o privilégio de presenciar, como jornalista, por seis vezes, ao longo de mais de duas décadas.
Sem falsas modéstias, conheço bem o ambiente. E sei que, rapidamente, as primeiras impressões com que chegamos vão sendo destruídas, uma após a outra, conforme se aproxima o início dos Jogos. E o que a minha experiência me dita é que o apocalipse tantas vezes anunciado, nas semanas anteriores, raramente se concretiza ou fica sequer perto.
Li e ouvi de tudo antes de apanhar o avião em Lisboa: que nenhum atleta iria aguentar a poluição de Pequim, que Atenas nunca conseguiria ter as instalações olímpicas prontas a tempo da inauguração, que o Rio de Janeiro iria ser um risco de segurança tanto para atletas como para espectadores.
Afinal, apesar dos “elefantes brancos” que essas edições deixaram para as gerações seguintes, pouco ou nada dessas ameaças se concretizaram. Em contrapartida, no entanto, ninguém previu o caos que seriam os transportes em Atlanta nem o delírio comercialista que invadiu aquele a que muitos chamaram os Jogos da Coca-Cola – o que fez abanar, em muito, a reputação dos EUA no seio do Comité Olímpico Internacional.
Ainda para mais quando se lhe juntou, pouco depois, o escândalo dos subornos para a atribuição dos Jogos de Inverno a Salt Lake City, obrigando até Juan Antonio Samaranch a depor em tribunal – uma humilhação que o dirigente catalão nunca mais perdoou aos americanos.
A realidade é sempre bem mais complexa e responde a uma regra básica, que vi repetir-se de quatro em quatro anos, em quatro continentes: os problemas que se anunciam antes da cerimónia de abertura – desde o caos na segurança às condições meteorológicas – costumam desaparecer milagrosamente no momento em que os atletas entram em ação.
Ao fim de um par de dias de competições, com dezenas delas a decorrerem à mesma hora, em diferentes pontos de uma cidade que ficou invadida por gentes de todo o mundo, sem claques nem holligans, a euforia depressa supera a depressão. Até porque, habitualmente, os locais preferem partir para longe e ver os Jogos pela televisão.
Se os Jogos Olímpicos são o céu para os atletas e para os detentores de bilhetes para os estádios, arenas, piscinas e outros recintos desportivos, são também um inferno para os habitantes das cidades que os acolhem. Por isso, promovem-se os chamados planos de evacuação gentis para evitar que milhares de pessoas fiquem presas no trânsito ou impedidas de circular em locais críticos.
Nos Jogos de Sydney, por exemplo, alteraram-se as férias escolares para coincidirem com as semanas de competição – diminuindo a pressão nos transportes. Em Londres e no Rio de Janeiro criaram-se novos feriados para convidar os locais a irem para fora.
Não se pense que tudo isto é um exagero ou qualquer excesso de zelo das autoridades, que criam faixas olímpicas nas principais artérias, impedem a circulação de automóveis particulares em áreas enormes e, como aconteceu em Londres ou Pequim, só permitem o acesso aos principais locais de competição através de transportes públicos – nomeadamente novas linhas de metro.
Todas estas medidas são justificadas pelo gigantismo dos Jogos Olímpicos, num espaço tão concentrado. Se quisermos encontrar uma comparação é como ter não apenas um “jogo grande” na cidade – com tudo o que sabemos isso implicar, por experiência própria, em matéria de transporte e de segurança -, mas uma dúzia deles em simultâneo, em instalações relativamente próximas umas das outras.
Com a agravante de, em alguns dias, ainda haver provas que atravessam as zonas centrais – como acontece tantas vezes no ciclismo, triatlo e maratona – impedindo até que muitos moradores possam sair das suas residências. Para que tudo se complique mais, ainda há o pesadelo de segurança, para proteger todos os participantes e espectadores, mas também as dezenas de chefes de Estado e de governo que por lá vão passando, com as suas comitivas oficiais.
Resultado: há dias nos Jogos Olímpicos em que nas deslocações é preciso repetir seis ou sete vezes a experiência de embarque num aeroporto: esvaziar os bolsos, meter a mochila no tapete do raiox e passar pelo detetor de metais, seja para entrar no estádio como para apanhar o metro ou num fan park, para assistir às provas num écrã gigante.
Os Jogos Olímpicos são muito mais do que uns jogos, como já referi. Mas a verdade é que só têm o prestígio e a importância que têm porque são sempre uns jogos extraordinários. E isto é verdade tanto nas competições mais importantes como naquelas modalidades a que, geralmente, não prestamos grande atenção.
O desporto nos Jogos Olímpicos é do nível mais elevado que se pode encontrar. Todos os que nele participam passaram anteriormente pelos processos de seleção mais apurados do planeta. Em alguns desportos ou modalidades, apenas vão os 16 melhores do mundo.
Os JO são sempre uns jogos extraordinários. Tanto nas competições mais importantes como naquelas a que não prestamos grande atenção. Em alguns desportos apenas vão os 16 melhores do mundo
Em imensas provas, o vencedor só é conhecido graças às tecnologias mais avançadas do photo-finnish, com as medalhas a ficarem separadas por centésimos de segundo – o que pode ser a distância entre o céu e o inferno, como bem sabe, aliás, o canoísta Emanuel Silva: em Londres 2012, a fazer dupla com Fernando Pimenta, rejubilou com a medalha de prata (mesmo que a de ouro lhes tenha escapado por escassos 16 centésimos); quatro anos depois, no Rio 2016, chorou de tristeza quando, com João Ribeiro, falharam o pódio por apenas 29 centésimos.
Numa final de triplo salto, com atletas como Nelson Évora e Pedro Pichardo a voarem para o ouro com marcas muito próximas dos 18 metros, o equivalente à largura de 2,5 balizas de futebol, as medalhas são decididas, tantas vezes, por menos do que a espessura do poste – sem oportunidade de recarga.
Como uma vez me explicou Nelson Évora, o grau de exigência numa prova rainha do atletismo é totalmente diferente da que se encontra na maioria dos desportos coletivos. “Numa final da Liga dos Campeões, por exemplo, entre os 22 jogadores no relvado, há dois ou três que são superatletas, e outros apenas muito bons. Os oito finalistas dos 100 metros ou do triplo são todos do nível do Messi ou do Cristiano Ronaldo e, por isso, qualquer um deles, num dia bom, pode ganhar o ouro”, sintetizou.
Ser campeão olímpico é um feito absolutamente extraordinário, só ao alcance de muito poucos – apenas cinco em Portugal, em mais de um século de participações. E essa é também a razão para que numa festa de celebração da juventude e do espírito competitivo, se veja tantos atletas a chorar no momento da vitória ou na subida ao pódio, bem como de quem os acompanha.
Quem esteve em Atlanta não se esquece das lágrimas de João Campos, treinador de Fernanda Ribeiro quando esta ultrapassou a chinesa Wang Junxia, a poucos metros da meta, e correu para a medalha de ouro. Nem, muito menos, a emoção que ele voltou a repetir, em Sydney 2000, desta vez acompanhada de um salto da bancada para a pista, depois de ver a sua pupila garantir o bronze.
Como também é impossível esquecer as lágrimas da desilusão, longe dos olhares do público, em locais recatados em que os jornalistas, embora testemunhas, têm o dever ético de respeitar a tristeza profunda de quem, após quatro anos intenso de trabalho, se vê eliminado ao primeiro combate ou falha a medalha por um pormenor quase insignificante – os tais centésimos de segundo ou poucos centímetros que separam a glória do esquecimento.
Na sua essência, os Jogos Olímpicos são um espelho da vida e do mundo, em cada momento – embora, na Aldeia Olímpica, o que se observa é uma realidade quase irreal, quase só habitada por corpos longos e perfeitos, sem uma grama de gordura e, quase todos, com egos à prova de bala e níveis de confiança cada vez mais turbinados por equipas completas de treino, que incluem fisiologistas, nutricionistas, mecânicos, psicólogos e, em tantos casos, treinadores que os acompanham desde que deram os primeiros passos no desporto.
Como na vida, encontra-se de tudo nos Jogos Olímpicos. Vi e cruzei-me com as mais variadas personalidades: heróis arrogantes, como Carl Lewis, competidores natos, como Michael Phelps (que foi ficando cada vez mais simpático e acessível, conforme ia batendo recordes de medalhas), lendas divertidas, como Usain Bolt, glórias que nunca perdem a aura nem a simpatia, como Rosa Mota e Dick Fosbury, e até personalidades extraordinárias que desafiavam os opositores com um sorriso nos lábios, como o carismático Francis Obikwelu.
Entrevistei e convivi com atletas depois de ganharem medalhas e, alguns Jogos depois, voltamo-nos a cruzar nos bastidores das competições, alguns como jornalistas, como a nadadora holandesa Inge de Bruijn, outros em funções técnicas, como o judoca Nuno Delgado.
Para além dos fervores nacionalistas e do negócio galopante em que se transformaram, os JO podem ser também um exemplo para um mundo melhor
Nos 17 dias de competição, sempre o senti, há um espírito olímpico que chega a ser contagioso. O espírito que, em parte, nos faz recuar ao sonho de Coubertin, e que até serve de antídoto ao pessimismo que impregna o ar destes tempos.
Em especial, quando os Olímpicos vão celebrar em Paris os primeiros Jogos com completa paridade entre géneros e, pela segunda vez, participa uma equipa de refugiados. São estes os momentos em que aceitamos que, para além dos fervores nacionalistas e do negócio galopante em que se transformaram, os Jogos Olímpicos são mesmo muito mais do que uns jogos. Podem ser também um exemplo para um mundo melhor.