JL: Como está esta crise a afetar o Ensino Superior e até que ponto as metas traçadas para 2030 estão em causa?
Manuel Heitor: Nada é posto em causa. Este é um problema global que levanta muitas incertezas a todos os níveis. Mas a incerteza só se combate com conhecimento. Por isso, os setores que estão associados à produção e difusão do conhecimento são aqueles que, a priori, têm mais competências e flexibilidade para responder a uma crise global. E há alguns indicadores que o demonstram, como a rápida adaptação ao ensino à distância pelas instituições. Na rede pública, que liga todos os estabelecimentos de ES e de Ciência, passámos de mil para 225 mil utilizadores diários.
O sistema já estava preparado para o ensino à distância?
Recorria-se apenas pontualmente a esse meio, mas ficou demonstrado que, numa situação excecional, estudantes e docentes passam rapidamente a usá-lo. Dizendo isto, não podemos ignorar as limitações deste tipo de ensino. Teremos que garantir que o que pode e deve ser feito à distância continue, mas criar as condições para que o resto seja feito presencialmente. Por exemplo, participei numa aula de ensino de um instrumento musical na Universidade de Évora: é impossível ser feito à distância por limitações técnicas. O mesmo acontece com outro tipo de aulas, como em enfermagem ou de laboratório. Por outro lado, esta questão veio abrir outro tipo de desigualdades que vai além das questões sócio-económicas e culturais… tem a ver com a capacidade de adaptação de cada aluno a este tipo de ferramentas.
Será que esta experiência vai permitir um diferente paradigma para o ES, mais próximo do que foi idealizado em algumas universidades europeias, em que os professores funcionem mais como orientadores, evitando as aulas do tipo magistral?
Esta crise também veio alavancar a rapidez de adotar formas ativas de aprendizagem. Combinar a parte expositiva com outras ferramentas, como as metodologias de autoaprendizagem, a formação, o trabalho em equipa e de grupo ou as aprendizagens baseadas em projetos. Sabemos que no sul da Europa há uma carga letiva superior aos países do centro e norte. Em Portugal, os estudantes têm em média 20 horas letivas por semana. Nas sociedades anglo-saxónicas estão entre as 12 e as 15. Outra questão, que o processo veio acelerar são as chamadas micro-credenciais. Ou seja, o que permite que um aluno vá tirar determinada cadeira a uma instituição sem que tenha que ali fazer o curso inteiro. Esse é um processo iniciado no último ano e meio na Europa e que vai ser acelerado.
Que balanço faz dos tempos de pandemia? O Ministério tem detetado casos de instituições em que tem sido particularmente difícil adotar o ensino à distância? Como tem agido nesses casos?
De uma forma geral, o balanço é muito positivo. Os números de adoção das plataformas são sintomáticos. Não podemos descurar casos menos positivos ou as áreas, como as que já referi, em que o ensino à distância se torna quase impossível. Mas mesmo fora dessas áreas, nos casos em que tudo decorre da melhor forma, sublinho, que em todo o processo de ensino há a necessidade de aulas presenciais. Está na génese das universidades modernas a existência de campus, onde os estudantes se juntam, interagem e trocam ideias. Precisamos desses locais. Não há nada mais deprimente do que ver campus vazios. É por isso que estamos a adotar medidas para a reabertura: começámos pelas unidades de investigação e temos aulas presenciais a partir de dia 18.
Quando vão abrir todas as universidades?
Estão todas abertas de forma diferenciada e faseada. O ES e a ciência gozam do princípio básico da autonomia institucional. Por isso compete às instituições decidir. Há aqui uma dose comportamental muito importante. Já encontrei dirigentes estudantis a dizer que não querem ir às aulas e outros a dizer o contrário. Há uma diversidade de situações relacionada com a incerteza. Os cientistas e os professores universitários podem ter mais conhecimento, mas não são diferentes do resto da população, também têm os seus receios e consoante isso tomam atitudes. Há ainda outros fatores. Temos uma percentagem muito elevada de estudantes deslocados.
Incluindo os estrangeiros…
Esses voltaram às suas terras. Agora põe-se o problema de regressar ou não às universidades. Estamos a tentar que as instituições abordem o problema caso a caso, garantindo que todos completem os estudos, mas também que os próximos meses sejam de preparação do próximo ano letivo. A situação é totalmente diferente do que se vive no básico e no secundário, em que os alunos estão em casa com os pais, com uma escola nas proximidades.
Depreende-se que várias instituições não abrirão aulas presenciais este ano letivo.
Sim. E há instituições que decidiram fazer avaliações presenciais, outras que não.
Perante a impossibilidade de ter aulas presenciais, pelo menos em alguns casos, o ensino perdeu qualidade. Há algum plano para colmatar as falhas destes últimos meses?
Trata-se de um período contido no tempo. Em formações de três a cinco anos, não são dois meses que vão deteriorar tudo. Esperamos resolver os problemas em coletivo. Mas não vejo danos com uma dimensão que possa influenciar uma geração. Na verdade, o que mais me preocupa é o período pós-Covid, face à depressão social e económica que nos espera e particularmente, em relação àqueles que estão a acabar as formações e precisam de emprego.
E o que vão fazer nesse sentido?
Lançámos uma ação em colaboração com empregadores públicos e privados para estimular os primeiros empregos e estabelecer uma relação mais próxima entre as instituições e as empresas. Espera-se também facilitar o desenvolvimento prolongado de competências, partindo do princípio que vamos assistir a uma reformulação de redes de produção económica
Mas essa preocupação já existia…
Estava associada a dois contextos externos: as oportunidades da digitalização e as alterações climáticas. Agora tudo foi tudo acelerado com a pandemia. Por outro lado, a pandemia introduziu novas noções de coexistência social assim como a necessidades de tipos de equipamentos que não eram produzidos na Europa. Isto foi um chamar de atenção para a soberania europeia. Temos que orientar os nossos conhecimentos científicos e técnicos para bens essenciais, uma vez que nada nos diz que no futuro não existirá uma nova pandemia ou que esta não possa ter novos ciclos.
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