1.
O 25 de Abril começou para mim no dia 16 de Março. Nesse mês e meio que separou os dois dias viveu-se um período em que, entre boatos e informações, se pressentia que o regime não iria durar muito.
Para os mais velhos, como a geração do neorrealismo que eu encontrava todos os dias no café Monte Carlo, marcada já por muitos momentos de frustração revolucionária, o golpe fora uma desilusão: ao saber da rendição do quartel das Caldas o comentário era de que a nossa tropa era pior que a marroquina (pouco tempos antes o avião do rei de Marrocos fora bombardeado e escapara, tendo os golpistas sido presos).
Mas encontrei nos meus papéis um poema que escrevi no dia seguinte, 17 de Março de 1974, que é significativo de que o ambiente que se vivia não era de absoluto pessimismo:
O FIM APROXIMAVA-SE. NO ENTANTO No Inverno, as primeiras notícias chegaram vinham da guerra. “Corre tudo [mal”, dizia o velho. Mas nós, empunhando os copos de aguardente e bebendo café, ríamo-nos: desta é que é. Não foi ainda dessa vez; no entanto, todos os sinais coincidiam na previsão de belos e terríveis dias. A inesgotável ânsia das madrugadas de combate… Ainda dessa vez não ouvimos o barulho próximo dos aviões, nem respirámos o sublime cheiro da pólvora. “Para a próxima..” com esta frase [no pensamento resistimos a mais um dia sem notícias no horizonte.”
No dia 25 soube da notícia por um telefonema, pelas 7 da manhã, quando me preparava para ir dar aulas na Machado de Castro. Obviamente, não fui dar aulas. Fui ao Rossio e passei pelo Chiado vendo, ainda antes da rendição de Caetano, que já se distribuíam livremente folhetos do MDP anunciando a vitória.
O que hoje representa é sobretudo a memória de que a liberdade, e a igualdade que então se sonhou, continua a ser um horizonte por alcançar, por muito que se tenha avançado nesse sentido.
Tendo vivido sob a Ditadura até aos 20 e poucos anos, sei que não é nada difícil regressar a uma situação como essa, seja qual for a sua forma; e aquilo em que a Europa se está a transformar já não é um seguro de vida para a Democracia em qualquer dos países da União.
Os primeiros dias foram vividos com a sensação de que tudo se transformava. Assisti à libertação dos presos, junto a Caxias e estive em Santa Apolónia na chegada de Mário Soares.Nessa altura estava na direção da Associação Portuguesa de Escritores e, nos dias antes do 1º de Maio, reunimo-nos para preparar a presença na manifestação.
Estava presente quando a Sophia lançou a palavra de ordem para um dos cartazes, “A poesia está na rua”, que levei durante algum tempo no desfile que se seguiu ao comício.
Mas houve um momento de humor negro quando, ao chegarmos ao Areeiro, um dos escritores viu uma rua com o nome de Agostinho Lourenço e gritou-nos que fôssemos arrancar a placa com o nome do torcionário, sendo logo seguido por alguns nesse gesto tão radical; ao chegar mais perto é que vimos que a legenda indicava que não era o inspetor da Pide quem dava o nome à rua mas um inofensivo homónimo, um cientista do século XIX. O nome lá continua, e muito bem.
Os tempos que se seguiram foram de militância muito eclética porque não queria perder nada do que estava a suceder, mas o meu envolvimento no que ia sucedendo deu-se sobretudo pela atividade que tinha na Associação de Escritores e pelo afastamento progressivo, ou rápido, da redação de O Tempo e o Modo, que fora inteiramente ocupado pelo MRPP, embora me continuasse a encontrar com amigos que ali fizera, como o José Maria Martins Soares, que morreria pouco tempo depois num desastre de automóvel.
Mas o que caracteriza esse período, para quem o viveu do 25 de Abril ao 25 de Novembro, é que muitos dias foram belos, e outros também foram terríveis, como escrevi nesse meu poema.
2.
Confesso que o único livro de que me lembro e que guardei como um retrato desses dias foi O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, de que tenho a 1ª edição e a cujo lançamento em 1980 assisti, na Casa do Algarve, com apresentação da Maria de Lourdes Belchior.
Fui ali levado pelo meu amigo, também algarvio, Manuel Roque, com quem convivi bastante na época das associações de estudantes, e com quem fui acompanhando muitos dos acontecimentos posteriores, até à sua morte, quando eu estava em Paris, ali o tendo acompanhado quando se tratava da doença a que não resistiu.
E curiosamente é de Lídia Jorge o outro livro em que o 25 de Abril tem um tratamento já com maior distância e um olhar menos apaixonado: Os Memoráveis.