Estou sentada atrás do senhor Presidente. O senhor Presidente continua a discursar. O Presidente que não tenho a honra de apresentar e no entanto apresento. O Presidente que não posso aplaudir e no entanto deve receber o meu aplauso. O Presidente que não subscrevo o que diz ou faz e no entanto me obriga a subscrever porque ocupo o lugar de presidenta da Câmara dos Representantes.
Um Presidente que nos encosta a todos à parede imóveis, para depois nos perguntar porque não avançamos com ele.
Respiro fundo. Viro mais uma página do seu discurso com a mesma mão direita que lhe estendi e que recusou apertar.
O senhor Presidente acaba de confirmar com entusiasmo que a nossa economia nunca cresceu tanto. Que o nosso departamento militar nunca foi tão poderoso. Que as nossas fronteiras nunca foram tão seguras. Que nunca as nossas famílias cresceram tanto como agora. Que nunca sentiu o país tão forte, tão rico.
O senhor Presidente informa que se não fosse ele a inverter o percurso catastrófico imposto pelas medidas económicas da administração anterior, o nosso país não prosperaria como prospera agora. Se não fosse ele, estaríamos na mão de perigosos socialistas.
O senhor Presidente deseja acabar com o Acordo Económico Americano de Comércio Livre (NAFTA) com o Canadá e o México. O acordo é intolerável e injusto e foi mesmo a única razão de força que o levou a candidatar-se à presidência deste país.
O senhor Presidente acaba de dizer que cumpre todas as suas promessas, que assina todas as propostas, e que apesar de todos os esforços de tantos e tão perigosos inimigos, a Nação é hoje a maior produtora de petróleo, a maior produtora de gás natural, a maior produtora de carne de vaca, a líder na produção de alimentos transgénicos, a mais temida força militar do mundo.
O senhor Presidente também nos relembrou que antes de ser Presidente de uma nação, foi apresentador de reality shows. O senhor Presidente sabe que o entretenimento chega mais longe que o protocolo, e a lágrima toca mais fundo do que a palavra.
O senhor Presidente apresentou vários convidados surpresa. Um líder de uma oposição que sabe, reunirá o acordo de todos na sala. Um polémico radialista conservador que anunciou recentemente ter um cancro terminal e que o senhor Presidente decidiu condecorar. Uma mãe e uma filha a quem ofereceu uma bolsa de estudos para que possam agora escolher que escola privada frequentar.
O senhor Presidente trouxe até à sala deste Congresso um marido que estava destacado numa zona de Guerra e que agora pode abraçar em direto a sua mulher e as suas duas filhas, que, surpresas, choram de felicidade.
O senhor Presidente quer acabar com esses radicais que discordam da segurança social privada que tanta felicidade traz a 180 milhões de norte-americanos. O senhor Presidente reitera que lutará com todas as suas forças contra todos aqueles que são contra a liberdade de escolha entre serviço educativo público e privado, entre serviços médicos públicos e privados, e com todos esses emigrantes ilegais e criminosos que andam por aí a traficar seres humanos quando podiam voltar para a sua terra. O senhor Presidente combate todos os que podem pôr em perigo a sua Nação e a sua próxima campanha eleitoral. O senhor Presidente sabe como ninguém que oferecer um frigorífico a quem não tem como guardar os alimentos é mais barato e mais fácil do que construir um plano a longo prazo para que nos permita a todos escolher o que queremos pôr na mesa. A escolha dos pobres deve ser dos ricos a quem se devem dar todas as oportunidades, incluindo ajudar os pobres.
O senhor Presidente construiu os melhores momentos de televisão na mesma sala onde se discutiu até ontem o seu impeachment por alegado abuso de poder.
Eu olho para a cópia do seu discurso sobre a minha mesa e reparo que ainda vamos a meio. O senhor Presidente ainda vai reconhecer que foi ele o responsável pela ótima relação que temos hoje com a China. Dirá que de agora em diante, a China saberá com o que conta, saberá que não mentimos quando ameaçamos, e que não brincamos quando fazemos piadas num discurso oficial. Mas não lhe basta a China. O senhor Presidente quer ir para Marte. Porque o senhor Presidente vive em Marte. O senhor Presidente está tão longe da nossa Constituição, tão longe dos nossos valores, tão longe do ar que respiramos, da água que bebemos, do árduo chão que pisamos todos os dias a caminho de casa. O senhor Presidente está tão longe que se permite dizer tudo.
E eu estou colada a ele, na fila atrás, a ouvir o seu discurso perfeitamente enquadrada na imagem que é televisionada para milhares de espectadores. Eu também sou este discurso. Eu também sou esta América. Eu também sou a sua legitimação. O senhor Presidente é um cavalo sem freio a correr ao lado de uma América que descarrila. Estou sentada na primeira carruagem deste comboio descontrolado, a ver a sua corrida ao segundo mandato da janela, ainda à espera do aperto de mão que me recusou. E penso: um Presidente não fala em nome próprío. Ninguém fala só em nome próprio. Um Presidente fala também em meu nome. E há 78 minutos que mente.
Acaba de vociferar que na América tudo é possível, que na América qualquer um pode subir na vida, que todos os sonhos são concretizáveis. O senhor Presidente acaba de dizer que a nossa Nação é a nossa tela e o nosso país é a nossa obra prima.
Pintar é pensar com as mãos. Escrever é pensar com as mãos. Pintar é recíproco. Mas pensar não. Nem sempre. Dialogar também não. E discursar também não. Ver implica distância, implica ter uma perspetiva. Mas pintar é como dar as mãos, é como beijar, é como apertar a mão. Exige reversibilidade, é mútuo, é o mesmo. Apertas a mão, tocas e és tocado. Habitas dois corpos com uma mesma ação. Sentes como o outro, és também o outro, por um momento, podes ser Um Grande em dois, sem separação, uma ponte rara sem concílio nem condenação.
Como quando pintas e o que vês é o que és na tela. O olho é a montanha, a minha mão é a tua mão.
Estou sentada atrás do Presidente enquanto o Presidente me pinta para sempre num quadro do qual não quero fazer parte nem desejo que seja pintado. A sua obra prima não pode ter só o seu corpo, uma só voz. O discurso termina. Penso em rezar por ele, por nós, mas temo não ser o suficiente. Penso em manifestar-me e de todas as alternativas esta pareceu-me a melhor. A mais elegante. Pego nos papéis e rasgo o discurso do senhor Presidente. O tempo se encarregará de ler este gesto à luz de uma História mais solidária, mais recíproca, mais unida, que estenda ao outro sempre a mão.
O aperto de mão

Um Presidente que nos encosta a todos à parede imóveis, para depois nos perguntar porque não avançamos com ele