Rodrigo Areias recebe-nos na Quinta dos Encados, a sudeste de Guimarães, propriedade que o avô Armando adquiriu, onde se produz um vinho verde multipremiado. Do cimo do monte, vê-se vinha sem fim, na paisagem intensamente verde que caracteriza o Alto Minho.
Não muito longe dali, a freguesia da Nespereira, fica a Casa do Alto, onde Raul Brandão viveu e escreveu grande parte da sua obra. Foi essa proximidade geográfica e afetiva que provocou um fascínio inicial do realizador pela sua obra, que é tão local quanto universal.
Há muito que Rodrigo Areias faz de Guimarães o centro do seu mundo e também um importante polo de produção cinematográfica no país, através da produtora Bando à Parte, que conta com largas dezenas de filmes no catálogo.
O truque, segundo explica, é a detenção dos meios de produção e a formação de uma equipa fixa, com quem trabalha filme após filme. Não só nas suas próprias obras, como as de muitos outros, como Edgar Pêra, Eduardo Brito, Carlos Amaral ou Pedro Maia.
O próprio Rodrigo Areias também realizou uma dezena de longas, dos géneros mais diversificados, sendo que a última delas, O Pior Homem de Londres, foi produzida por Paulo Branco.
A Pedra Sonha dar Flor baseia-se em A Morte do Palhaço, mas passa por diferentes livros de Raul Brandão, com grande fidelidade ao texto. É um filme de narrativa difusa, com grande profunidade literária e filosófica, que ganha coerência através de elementos cinematográficos.
A começar pela fotografia de Jorge Quintela, que tira o melhor proveito da região da Ria de Aveiro e também da expressividade dos rostos dos atores (António Durão, Vítor Correia, Miguel Borges, entre outros). A isto junta-se a música de Dada Garbeck, sendo que o músico vimaranense tem interpertado a banda sonora original em cineconcertos.
De onde vem a paixão por Raul Brandão?
Rodrigo Areias: Há um lado muito vimaranense, de pertença à nossa comunidade, pois toda a vida de adulto e a produção literária de Raul Brandão foi feita aqui. Eu cresci na Polvoreira e a casa do Alto, onde viveu o Raul Brandão, é mesmo ali ao lado, na freguesia da Nespereira. Isso por si só suscita curiosidade. Apesar da literatura ser universal, ele está a falar de coisas de forma muito local, que reconheço como minhas. O primeiro livro que li foi A Farsa e pensei: “Uau, o que é que é isto?”
Foi a partir desse fascínio que surgiu a ideia do filme?
Havia várias pessoas à minha volta que partilhavam o fascínio pelo Raul Brandão. O Pedro Bastos, que escreve o argumento, tinha um conhecimento elevado sobre a sua obra, e o Eduardo Brito, também argumentista, foi responsável pelo transporte do espólio do Raul Brandão da Torre do Tombo para a Sociedade Mateus Sarmento. A verdade é que começámos por querer fazer um documentário sobre o Raul Brandão, depois passou a ser sobre o Hálito Azul e finalmente sobre A Morte do Palhaço, que resulta neste A Pedra Sonha dar Flor.
Tem muitas obras lá misturadas.
Faz sentido que assim seja, depois de conhecer por dentro a obra do Raul Brandão. Por exemplo, o Avejão como peça de teatro é uma versão estendida da cena do Senhor Gregório, de A Morte do Palhaço. Há muitos exemplos, de personagens que vão saltando, como o Pipa, e isso cria-te uma curiosidade sobre os próprios personagens. A estrutura de A Morte do Palhaço tem interesse, é um livro casca de cebola, camada atrás de camada. Muitas vezes tínhamos discussões sobre quem está a dizer a frase.
O universo de Raul Brandão por vez é bastante, pesado, quando fala de questões existenciais, tabus e tragédias…
Se passamos a vida inteira a acreditar em algo que, no final, percebemos que não existe, que vida é esta, afinal? Coloca-se sempre à prova aquele que viveu com Deus. Há também um lado de exposição da religião, e da forma como os padres se colocavam em termos sociais e económicos. Isso revela uma grande coragem, estamos a falar da década de 20 do século passado.
Mantiveste-te fiel à crueza do livro?
Quase sempre. Senti necessidade amenizar a questão das prostitutas, porque nos textos de Raul Brandão é muito mais visceral, duro, violento. Quando a Luísa se vai suicidar no rio é de uma violência grande. Um texto incrível, que pode não ter uma relação direta com a realidade, mas as pessoas acabam por perceber.
Até que ponto tudo o que se ouve é tirado dos livros do Raul Brandão?
Quis mesmo que o texto fosse todo dele, mesmo que retirando de livros diferentes. Isso é uma mais-valia para o filme. Cria alguma densidade e distanciamento, mas é fundamental para ser justo para com o autor.
Há de facto um distanciamento. Apesar da sucessão de tragédias, estamos perante um mundo que não é o nosso, uma espécie de ambiente idílico, mas ao contrário…
O que ajuda na abstração é não ter um tempo. A época é híbrida, às vezes parece que estamos nos anos 80, mas não há a certeza. Isso é das coisas que gosto mais de fazer, esbater o tempo, para que não torne importante.
Até porque há um circo….
E há artistas de circo a entrarem no filme. Era importante trazer elementos da realidade das artes circenses, hoje em fim de ciclo, porque isso também representa um fim de ciclo naquela obra.
Apesar de não existir uma narrativa linear, o filme é fluído. O que lhe dá consistência?
Coexistem no mesmo espaço. Vem por exemplo no cenário da ria. Aparece, não só porque tenho um fascínio por aquela paisagem, mas também porque é abordada em Os Pescadores. A personagem do ladrão, que entra em várias obras, no final está a falar sobre a ria, como uma divindade.
Toda a riqueza daquele território é canalizada pela água. É algo fora do real. Sempre me fascinou aquelas casas em ilhas, no meio da ria. Um princípio de isolamento, mas em que a água também transforma as pessoas. Filmámos a Aveiro, Ovar, Estarreja e Águeda.
O trabalho fotográfico é quase emoldurável. Como foi feito?
Criei regras de enquadramento. Resolvi ser geométrico. Tinha escalas, lentes, distância e aplicava a regra. Mais por experiência de linguagem. Aquilo propicia todo um lado de fotografia, de expansão do território, de beleza da paisagem, de infinito, de plenitude.
No fundo, isso ajuda na homogeneização narrativa. Porque as pessoas estão enquadradas naquele espaço. Há um personagem que se revela contra o autor do livro e eu acho isso maravilhoso.
A música também cria grande coerência e o filme tem tido apresentações com música ao vivo. Porquê?
Faço isso desde sempre. Vou trazendo experiências musicais diferentes, ainda que o Legendary Tigerman esteja mais presente do que os outros. Julgo que é muito importante a utilização da música de forma a atingir o novo público, uma outra ideia de espetáculos. Tem resultado bem. No Surdina, o público dos cineconcertos foi muito superior.
Musicalmente o que procuraste neste filme?
Aqui volta-se mais às minhas origens, com um só músico, apesar do trabalho de coros do Rui. Ele foi buscar o canto às almas, que faz parte da nossa tradição. Também cria uma coesão forte.
Fazes sempre filmes muito diferentes. Que pontos encontras em comum entre A Pedra Sonha dar Flor e O Pior Homem de Londres?
Têm ambos um ponto de partida clássico, mas o outro vem da pintura e este da literatura. Saber que ia fazer este filme também me ajudou a fazer o outro. Já sabia que este ia ser mais difícil, duro e radical, e isso permitiu que o outro fosse mais acessível.
A maior diferença talvez seja mesmo que O Pior Homem de Londres não foi produzido por ti…
A equipa acaba por se manter sempre muito parecida de filme para filme. Até em O Pior Homem de Londres aconteceu, apesar de não ser produzido por mim. É um grupo de pessoas tem a intenção de fazer muitos filmes. Um grupo multifacetado.
As pessoas que trabalham fazem muitas coisas noutras áreas, não são profissionais do cinema. Esta coisa do profissional do cinema é que começa a complicar o sistema criativo, que é quando consideram quer não podem trazer nada de criativo para cima da mesa porque são técnicos.
A minha intenção é manter esse sistema sempre ativo: em que uns trabalham nos filmes dos outros, nem sempre nas mesmas funções.
É um pouco a lógica do Fassbinder, que trabalhava com uma equipa fixa, como se fosse uma companhia de teatro…
Sempre vi no Fassbinder um exemplo. Alguém que fez as coisas até ao limite. Consigo fazer isso do ponto de vista do produtor. Produzimos filmes aos montes, porque criámos uma escala de produção hiper independente. A detenção dos meios de produção permite o ato revolucionário de não parar de criar.
Não sendo sempre eu o realizador, queremos criar as condições para que o ímpeto criativo não seja atropelado por outra coisa. Nisso identifico-me pelo Fassbinder. Não com os seus filmes que são muito diferente, embora admire bastante.
Quantos filmes têm em mãos?
São sempre cerca de 20. Queremos dar espaço para que cada um produza os seus filmes. Por exemplo, o Pedro Bastos está a fazer um filme em 35 mmm com uma câmara à manivela… O Quintela anda a filmar bruxaria em São Tomé. E o cinema aqui neste território consegue dinamizar outras artes. Aparecem editoras de poesia como a Cutelo, do Rui Dias, que também trabalha coo assistente de câmara
Tudo isto em Guimarães…
Estamos sediados num centro cultural. Quando chegámos lá nem paredes tinha. Chove lá dentro, mas não saímos de lá nem por nada. É um centro cultural punk, que reconstruímos das cinzas. Não é em sofás de couro que vamos gastar o nosso dinheiro.
Tenho que criar condições técnicas para fazer os filmes e sobretudo condições de vida para todos aqueles que trabalham comigo. Não produzimos filmes, mas sim pessoas. Unimo-nos para nos manifestar artisticamente, mas no final queremos todos beber cerveja e comer bifanas.