Nascido em 1955 na Argélia (tal como Camus) ao nível do argumento a obra de Ferrandez mistura livros com outros autores, incluindo adaptações de nomes tão diferentes como Daniel Pennac ou Marcel Pagnol, com trabalhos próprios focando sobretudo a história colonial da Argélia, como a premiada série “Carnets d’Orient”. O interesse em Camus é pois natural, e Ferrandez já antes adaptara a história curta “L’Hôte” (2009). Do ponto de vista do desenho o ambiente luminoso de ambos os lados do Mediterrâneo transformam o traço clássico do autor, tornando-o imediatamente reconhecível, quer em banda desenhada, quer nos seus cadernos de viagem. Em “O estrangeiro” a cor em registo de aguarela é utilizada de forma muito interessante, oscilando entre o diáfano e o opressivo, e mantendo um tom de permanente distanciamento, quer do leitor em relação ao protagonista, quer deste em termos de todo o meio envolvente, de Argel ao deserto.
A história do narrador-protagonista Meurseault é na verdade um julgamento em duas partes: o julgamento concreto do tribunal que o condena pelo assassinato de um cidadão árabe desencadeado pelo comportamento do seu vago amigo de moral duvidosa Sintès; e o julgamento acessório de uma sociedade que critica o seu comportamento frio (não só, mas sobretudo) quanto à morte da mãe e ao respetivo funeral, e que terá um papel fundamental na sua condenação à morte. O distanciamento quase autista de Meurseault em relação ao que o rodeia é ainda visível na sua relação (pouco empenhada) com Marie, na falta de ambições profissionais. E é muito curioso como a sua emotividade apenas se manifesta decisivamente quando a sua falta é questionada. “O estrangeiro” é um retrato perturbador de um homem que deambula aparentemente sem ligações pelo mundo; mas o seu comportamento não-canónico será razão suficiente para justificar a pena a que é condenado? Na verdade Meurseault é condenado por ter disparado tiros a mais, que põem em causa a tese de legítima defesa, ou pela falta de trato nas relações sociais? Por não se comportar como “é suposto”?
Nesta versão de “O estrangeiro” há um problema comum em adaptações: o excesso de respeito pelo original, que faz com que o uso de uma outra forma de linguagem se fique muitas vezes pelo funcional, e não consiga transmitir bem as indecisões aparentes do texto (como na cena do tiroteio). No entanto Ferrandez também utiliza o desenho para sublinhar outros aspetos, nomeadamente relativos às personagens “Árabes” (que Camus nunca nomeia), transformando-as, de peça coletiva do absurdo que rodeia o protagonista, em indivíduos, chamando a atenção para o contexto colonial subjacente. Meurseault pode ser um estranho para o sistema sócio-judiciário que o avalia, mas esse sistema é também estranho na Argélia. O “Outro” permanece do outro lado da rua, no outro extremo das dunas, ao canto da sala de audiências.
“O estrangeiro” abre o apetite para o que poderão ser futuras apostas da Arcádia em BD. Tal como na banda desenhada “de autor” ou norte-americana seria interessante haver alguma concorrência no âmbito franco-belga.
O estrangeiro. Argumento e desenhos de Jacques Ferrandez a partir da obra homónima de Albert Camus. Arcádia. 140 pp., 22,50 Euros.