No seguimento do anterior De Profundis (filme de animação/livro ilustrado, editado pela ASA em 2008), e com claras pontes com a sua obra mais emblemática Traço de giz (1993), Ardalén comunga do grande fascínio pelo mar e pela memória, imbricando nos temas fortes recorrentes em Prado: a perda, a desilusão, a solidão, e a procura do significado possível por entre ruínas, literais e figuradas, num contexto em que real e onírico se confundem. Na verdade esta é talvez a obra mais otimista de um autor conhecido por utilizar, com requinte, a infelicidade e a melancolia enquanto principais motores narrativos.
Em Ardalén uma mulher em crise de meia idade chega a uma pequena aldeia na Galiza em busca do rasto fantasmagórico da única família que lhe resta, um avô desaparecido há muito enquanto emigrante no Caribe. Será o velho que vive isolado na sua demência uma testemunha fiável da existência desse misterioso antepassado? Qual o verdadeiro alcance da sua memória fragmentada, constantemente imersa em visões? E que outros segredos e ressentimentos escondem a aldeia, a visitante, a sua família?
Com um espaço inusitado para desenvolver a história, nota-se o cuidado na planificação, incluindo os documentos adicionais entre capítulos (como em Watchmen). A princípio anódinos, é a estranheza causada pela sua leitura que alerta o leitor nos instantes em que a narrativa parece enamorar-se das fantasias (virtuosamente desenhadas) de um velho senil cujas memórias podem nem ser suas. Ou serão? E se lhe pertencem, pelo menos em parte, como as obteve? Por roubo ou através de uma infusão trazida pelo vento marítimo? Podem recordações ser transmitidas como partículas, uma memória homeopática moldada em ar? Os desafios que Prado coloca nos seus livros são sempre excelentes perguntas, avaliar as respostas faz parte da relação que cada leitor estabelece, neste caso com o que significa a memória ou a mentira, qual o verdadeiro valor de recordações. E como as usar para construir felicidade.
Utilizando uma planificação linear, é na composição das vinhetas que fundem realidade e sonho que o excepcional talento de Prado emerge. Para isso é fundamental a aplicação de cor, que é, mais do que o traço em si, a assinatura do autor, com um crucial papel narrativo. Sendo rica e luminosa não deixa muitos espaços vazios, em branco (mesmo entre vinhetas); e sem esse espaço para o desenho respirar o mesmo estilo de ilustração pode passar de luminoso a opressivo na transição entre duas vinhetas. Num instante admira-se a sua leveza, no outro ressente-se o seu barroquismo. A cor é pois a principal ferramenta gráfica para criar um universo onde se confundem as experiências que as personagens vivem, e as que acreditam viver. Nesse sentido as soluções mais convencionais num fim que se pode classificar como “clássico” vincam que a verdadeira paixão do autor está em explorar o contexto, não tanto o conteúdo. Ao tornar luminosa a existência banal do seu protagonista involuntário Ardalén é mais um excelente exemplo de como Miguelanxo Prado consegue tornar o implausível quase provável, esticando os limites do sonho até o leitor acreditar estar acordado nele.
Ardalén. Argumento e desenhos de Miguelanxo Prado. ASA, 300 pp., 33 Euros.