Explico: se “Astérix entre os Pictos” (ASA) fosse horrível poderia até ter curiosidade enquanto caricatura série B do original, como, sei lá, “Tubarão 2” ou “Psico” realizado (repetido) por Gus van Sant. Só que, infelizmente, os últimos álbuns a solo de Albert Uderzo já fizeram demasiado bem esse papel, com destaque para o inenarrável “O céu caiu-lhe em cima da cabeça”. Este novo álbum só poderia por isso ser muito melhor, bastava ser competente. E isso chegará, arrisco, para a maior parte do público interessado em “Astérix”.
Mas “Astérix entre os Pictos” é bom? Não chega a tanto. Alguns dirão que os novos “Lucky Luke” são superiores, e é verdade. Mas também porque a distância que havia a percorrer para o original era menor. O “Lucky Luke” de René Goscinny (texto) e Morris (desenho) era muito bem feito, o “Astérix” de Goscinny (texto) e Uderzo (desenho) foi um marco. Na escrita de “Lucky Luke” (e talvez também por não ter criado a personagem) Goscinny realizava pequenas parábolas, com elementos fixos que se tornavam repetitivos, e sempre com um número limitado de inovações para cada aventura (que se tornavam por isso facilmente identificáveis), resoluções simples, e dualidades marcadas. “Lucky Luke” era sobretudo sobre cada história. Em “Astérix” o humor era usado para retratos e análises psicológicas, antropológicas e sociais, que, apesar de se focarem na França da época, transcendiam completamente as referências, enriquecendo-as com abordagens internacionais e elementos secundários surpreendentes no modo como eram trabalhados. “Astérix” também tinha uma história, mas não se limitava a ela. Pode-se abordar Goscinny enquanto uma espécie de talentoso ruralista conservador (tal como J.R.R. Tolkien, por exemplo), mas os seus argumentos têm muitas camadas, podem ser desmontados de várias maneiras, atraindo diferentes públicos. E, de facto, continham opiniões, uma filosofia. Podiam ser discutidos.
É isso que falta a “Astérix entre os Pictos”, aventura passada na Escócia. E, se calhar, teria mesmo de faltar, considerando o modo “trabalhado” como o livro surge. O humor basal está lá, pormenores narrativos também. É certo que há uma história simples e linear, mas isso já havia noutros álbuns, mesmo nalguns dos melhores. Há igualmente uma compreensível reverência do argumentista, no modo como copia elementos de livros anteriores e quer tocar muitos pontos reconhecíveis do universo, o que pode resultar em passagens desgarradas. Mas, como disse atrás, desse ponto de visto o livro até é, sejamos justos, competente, excepto nalguns pontos (porque diabo falaria um escocês com títulos de músicas de “rock” das mais variadas proveniências?). O que não há é qualquer opinião a transmitir, apenas um vazio politicamente correto, que não ofende nem estimula. As personagens introduzidas não têm dimensão para além de arquétipos, os escoceses não se individualizam enquanto tal, surgem como meros gauleses de “kilt”. E, lá está, os elementos secundários são anódinos e mal utilizados (o censor romano, o monstro do Lago Ness) no sentido em que não fazem falta nenhuma. Tem graça o modo como é citado “Macbeth”, mas é um pormenor.
Quem são os autores deste livro? Não interessa muito. Há um desenhador que imita (bem) Albert Uderzo, há um argumentista que tenta imitar René Goscinny. Outros se seguirão. Ou os mesmos. Mas, tal como as mortes/ressurreições de Batman ou Superman ou Captain America, duvido que venha a valer muito a pena discuti-los, a não ser para criar um “acontecimento”, mais um frémito artificial em torno de um outro “nim”. Os álbuns vão vender e “Astérix” continua, para já apenas para quem quiser revisitar a forma sem o essencial do conteúdo.