Embora não tenha tido o meu voto (que foi para Diário Rasgado, de Marco Mendes) este é um livro muito meritório, que procura maneiras inovadoras de abordar temas complexos, e que merece sem dúvida a atenção que tem tido.
Passado em 1967 O Baile é protagonizado por um inspetor da PIDE, enviado a uma isolada aldeia piscatória para investigar um estranho caso que ameaça a tranquila “normalidade” do país profundo. Esta espécie de resumo simplificado é a única possibilidade para o espaço disponível. Senão vejamos: Nuno Duarte trata, refere, ou sugere (por vezes com uma cena ou, no limite, numa frase) tópicos como a tortura, o poder da igreja, a culpabilização e opressão das mulheres, a solidariedade familiar, a passividade resignada e quase masoquista da população, para além da guerra colonial ou do exílio. O objetivo é traçar um retrato do país, sem abdicar da complexidade. Mas Duarte é também um argumentista com vocação narrativa. Um pouco à semelhança de The Walking Dead (e, já agora, mas a outro nível, Dog Mendonça e Pizzaboy), O Baile é, por isso, estruturalmente uma BD de terror clássica, que usa “zombies”, não só enquanto catalisadores, mas (também) na qualidade de elemento alegórico-simbólico do Portugal da época. Para além do efeito de surpresa que esta opção acarreta, a vantagem é que o livro pode ser apreciado a vários níveis, até por leitores a quem não interesse o registo histórico subjacente, mas sintam afinidade com o ambiente lovecraftiano.
A questão é que, se a ambição do argumento nos seus diversos cambiantes parece desmesurada para umas meras 46 páginas, é porque é mesmo. Oscilando entre registos e tentando acomodar diferentes ideias, fica a sensação de que o tema merecia mais páginas/volumes, um tratamento mais profundo de algumas personagens e situações, uma resolução menos apressada. Merecia, no fundo, o espaço dado a A fórmula de felicidade, o notável livro anterior de Nuno Duarte (desenhos de Osvaldo Medina), que até tinha uma estrutura e alcance menos ambiciosos. O excelente desenho (e cor) de Joana Afonso reflete um pouco as mesmas dúvidas, com o traço caricatural a revelar-se perfeito para o registo fantástico, não tanto para os aspetos mais realistas. Mas, ao escolher temas complexos e juntando diferentes dimensões numa só história, O Baile é uma banda desenhada que pode (e merece) ser descodificada por muita gente, de muitas maneiras.
Uma nota ainda para outra obra que vale a pena descobrir, porque aborda outros dilemas da mesma época. Apesar de algumas notórias fragilidades no texto e desenho, Cinzas da Revolta de Miguel Peres e João Amaral (ASA) é uma aposta corajosa que glosa a guerra colonial em Angola. Tentando conciliar vários registos (histórico, “thriller”, guerra) e perspectivas (soldados, guerrilheiros, fazendeiros) tem, exatamente como O Baile, pouco espaço para resolver os seus múltiplos ângulos narrativos. Mas ver temas relacionados com o Antigo Regime tratados em banda desenhada é um evento que se saúda. Talvez tenha chegado (finalmente) a hora de os desenvolver mais a fundo.
O Baile. Argumento de Nuno Duarte, desenhos de Joana Afonso. Kingpin Books, 48 pp., 12 Euros.
Cinzas da Revolta. Argumento de Miguel Peres, desenhos de Jhion (João Amaral). ASA, 48 pp., 11,90 Euros.