Os dois mais interessantes álbuns deste género que li são Le Groom vert-de-gris de Olivier Schwartz (desenho) e Yann (argumento) e sobretudo Le Journal d’un ingénu de Émile Bravo. Porquê? Porque são excelentes livros, que calharam ser em banda desenhada e protagonizados por Spirou e Fantasio. Claro que esse último facto lhes dá outro poder evocativo, o que não sucederia não fossem os heróis versões de conhecidas personagens da BD infanto-juvenil. E em ambos os casos a presença do humor físico (o bom velho “slapstick” dos filmes mudos) e a essência das personagens para além da caracterização gráfica (o sério Spirou, o trapalhão Fantasio) asseguram que o leitor não se esquece disso. Mas ambos os livros podem ser lidos por quem não conhece muito de Spirou, ou aprecia o género de BD que tende a simbolizar.
O interesse passa pelos Grandes Temas que servem aqui de mote, e pelo modo inteligente como os autores os referem de um modo realista sem perder de vista a essência da BD de aventuras juvenil que Spirou & Fantasio representa. Sem perder de vista, mas não se coibindo de a desafiar. Em Le Groom vert-de-gris o fulcro é a obscura relação entre o Colaboracionismo e a Resistência na Bélgica ocupada da Segunda Grande Guerra. Melhor: entres os vários tipos de Colaboracionismo (genuíno, interesseiro, politicamente motivado ou como arma de espionagem), e os vários tipos de Resistência, por vezes antagónicos (comunista, anti-comunista). Um tema que, após décadas de ausência, se vai tornando um pouco menos sensível na Europa, abordado criticamente na sua complexidade, e já não com o maniqueísmo que apenas reconhece heróis e traidores. Em BD podem citar-se as interessantes obras do argumentista francês Philippe Richelle (Amours Fragiles ou Opération Vent Printanier). Já no cinema há outros excelentes exemplos, como o holandês Zwartboek/O Caderno Negro (2006, o filme que “resgatou” Paul Verhoeven), o francês Un Secret (2007, de Claude Miller), ou o dinamarquês Flammen & Citronen (2008, de Ole Christian Madsen).
Em Le Journal d’un ingénu, temporalmente anterior, discutem-se as tensões pré-Guerra que levariam ao estado de coisas retratado em Le Groom vert-de-gris. Mas a obra de Émile Bravo é um livro superior na sua complexidade e subtileza, misturando a geopolítica global, política nacional, e a oposição entre o jornalismo político e o jornalismo cor-de-rosa, sem nunca perder o humor característico da série “normal”. Le Journal d’un ingénu usa ainda o esquilo Spip (uma espécie de consciência-Grilo Falante da série) de um maneira muito inteligente, e com um toque de sarcasmo negro notável. Tudo surge no fluir da história, nada é forçado, e variam-se os mecanismo narrativos. As movimentações de políticos Nazis e Polacos na véspera da ocupação da Polónia e início “oficial” do conflito, ou a discussão em torno dos comunistas internacionalistas “ingénuos” e dos estalinistas “duros” são explícitas. Já a questão judaica surge indirectamente através das acções de duas personagens secundárias. E a oposição entre o partido proto-fascista Rexista e os comunistas na Bélgica, ou a importância da Guerra Civil Espanhola, aparecem em diálogos de miúdos que jogam à bola num descampado, profeticamente arbitrados por Spirou.
Por outro lado, o que falta ainda como Grande Tema em ambas as histórias é também claro: para além do colonialismo ausente está a identidade esquizofrénica da Bélgica Multicefálica Flamengo-Valonico-Bruxelense. Pelos vistos este é uma tema ainda mais difícil de abordar….
Há também nestes livros a homenagem à influência maior que é claramente Tintin, até talvez com um rumor de orfandade. Blake & Mortimer continua, Spirou & Fantasio também, constrangimentos legais limitam até as representações-homenagens à personagem de Hergé. O que não impede que em Le Groom vert-de-gris haja inúmeras citações a livros de Tintin ou que nele surjam sorrateiramente Hergé, Tintin, Milou ou Quick & Flupke, outras personagens do autor. Ou Edgar Pierre Jacobs e a sua personagem Francis Blake. Ou inúmeras outras pessoas, personagens e referências (mal) escondidas nos cenários. Só por isso este livro é uma delícia para os aficionados da BD franco-belga, quer para os fãs da mais realista linha-clara de Hergé e Jacobs, quer para os da mais caricatural Escola de Marcinelle, que têm Spirou como referência. Este manancial de “fan-geek” só não se torna limitativo porque a história não cede no realismo que se atribuiu, embora mesmo nas cenas mais violentas, como o ataque falhado da Resistência na estação de comboios, os autores usem vários “gags” visuais, condicionando um pouco o alcance da narrativa. Por entre os Grandes Temas Schwartz e Yann nunca resistem à tentação de acrescentar mais um toque humorístico mesmo que despropositado, parecem uns miúdos.
Mais uma vez em Le Journal d’un ingénu Émile Bravo tinha trunfado o tema da homenagem com a sua subtil “transformação” de Spirou em “Tintin”. Uma transformação momentânea, como que a respeitar os limites das personagens e o fulcro da história. Porque há de facto limites que Le Groom vert-de-gris de certo modo transgride ao representar Spirou e Fantasio como claros intervenientes directos que escolheram um lado até às últimas consequências. E, numa boa solução do argumento, cada um ignora as convicções do outro. No anterior Le Journal d’un ingénu os protagonistas ainda não perceberam que há lados e que é crucial escolher um, sabe-lo-ão no final. Até lá mantêm a ingenuidade, a vida dentro de uma redoma que seria a da maioria dos seus concidadãos da época, preocupados com o pessoal, alheados do mundo. Esta é de resto a atitude mais comum na BD/literatura/cinema infanto-juvenil (e não só) de aventuras (e não só), que tende a isolar uma crise/variável, mantendo o resto constante e inquestionado. Usando referências de um género de banda desenhada (sem violência explícita, ou psicologias baratas) Bravo usa-as para contar uma excelente história que o transcende, mas não se coíbe de discorrer sobre as suas limitações. A par das séries de arqueologia mitológica anglo-saxónica como League of Extraordinary Gentlemen de Alan Moore e Kevin O’Neil e sobretudo Planetary de Warren Ellis e John Cassaday esta é uma das mais impressionantes Meta-BDs que tive oportunidade de ler, precisamente porque, ao contrário de outras tentativas (as de Trondheim, por exemplo) não tenta constantemente provar o quão arguto é o autor.
Na aparência Le Groom vert-de-gris parece mais revolucionário, precisamente porque desafia as espectativas do género; apesar do humor inusitado e das citações constantes define-se como um livro “adulto”. Ao manter-se dentro das fronteiras Le Journal d’un ingénu encontrou o melhor modo de as tornar irrelevantes.
Spirou et Fantasio: Le Journal d’un ingénu por Émile Bravo. Dupuis, 2008 (19/20).
Spirou et Fantasio: Le Groom vert-de-gris por Olivier Schwartz (desenho) e Yann (argumento). Dupuis, 2010 (17/20).