É muito provável que, para além de tudo o que se possa dele dizer, Manuel Caldas seja o melhor Editor do qual nunca se ouviu falar. Não especificamente de banda desenhada. Editor. Ponto. E esse título apócrifo é merecido a vários títulos.
Primeiro, porque Manuel Caldas é um Editor. Parece óbvio? Não é. Um Editor (com maiúsculas) é alguém que escolhe obras com critérios identificáveis, e mantém as suas escolhas. Alguém que seja simplesmente editor está sempre à procura das últimas modas, muda convicções com a velocidade pragmática de uma sondagem. Não é pecado, é mesmo capaz de ser muito inteligente, mas não chega.
Depois porque nas edições de Manuel Caldas há um cuidado obcessivo com a qualidade das reproduções, com a revisitação das pranchas, com o formato da edição. No seu processo criativo (porque disso também se trata) de recolher os melhores elementos de diferentes reproduções de uma página para obter um perfeito “original” Manuel Caldas limita-se interpretar o que a obra lhe pediu. Não se preocupa com estudos de mercado, nos vários públicos-alvo possíveis. Em pensar se é viável uma edição integral, se um dado livro vai caber em prateleiras, ou poder ser arrumado junto a livros semelhantes de outras editoras. Sem concessões que não a si mesmo.
E isto é necessariamente bom? Sempre? Se fosse Caldas seria também o editor nacional mais bem sucedido… E quaisquer homenagens seriam as rotinas do costume, não estas.
Pessoalmente devo a Manuel Caldas ter-me lançado na escrita sobre banda desenhada, no seu excelente fanzine NEMO. Agradeço-lhe também o desafio impossível de traduzir pranchas seleccionadas do transcendente e intradutível Krazy Kat de George Herriman (no livro Krazy, Ignatz & Pupp). Como bom editor que nunca deixa de ser Caldas seleccionou pranchas com pouco texto, e manteve no livro também o original no dialecto original, aparentado com o inglês.
Manuel Caldas foi também o único que poderia ter-me levado a re-avaliar o que penso de Prince Valiant/Príncipe Valente de Hal Foster, ou de Lance, de Warren Tufts. Posso não ter mudado muito de ideias quanto à qualidade destes autores e obras, mas tenho-lhes outro respeito. No caso de Prince Valiant recuso-me mesmo a considerar sequer os volumes editados após Caldas ter perdido o controlo da sua edição-sonho de sempre. É como pensar Eusébio a jogar pelo Beira-Mar; foi verdade mas não fez sentido. E digo isto com apreço por algumas edições subsequentes da mesma editora, é preciso saber separar as águas.
Manuel Caldas merece pois que se digam coisas bonitas a seu respeito, e ao mesmo tempo não as merece. Porque, sejamos francos, soam sempre a elogio fúnebre.
O que Manuel Caldas de facto merece é que o seu trabalho e livros não sejam apenas elogiados e apreciados por pessoas ligadas à banda desenhada e ilustração. Pregar aos convertidos pode ser reconfortante mas nunca é útil, e o “mundo da banda desenhada” é composto por vários mundos que cruzam pouco as suas órbitas. Penso muitas vezes em quem será o público-alvo para os livros de Manuel Caldas. Nostálgicos e apreciadores da BD de jornais norte-americana, sem dúvida. Mas quantos desses haverá? Por outro lado, não é automático que mesmo leitores de séries clássicas franco-belgas entendam este esforço. E já nem falo de cultores de BD contemporânea europeia, americana, japonesa. Talvez alguns, mas não me parece ser esse o caminho ideal. Com Manuel Caldas penso mais em Feiras do Livro e Galerias de Arte do que em Festivais de Banda Desenhada. Os Meninos Kin-der, Krazy Kat, O Corvo, Príncipe Valente, Lance, Dot & Dash, Ferd’nand seriam de consulta útil para arquitectos, cenógrafos, cineastas, ilustradores, escritores, aderecistas, actores, artistas plásticos, filósofos, linguistas, sociólogos, criativos. Editores. E autores de BD, quaisquer que sejam os seus interesses ou influências. Ou “apenas” leitores curiosos e exigentes que nunca folheram uma banda desenhada. Que olhassem sem preconceitos limitados pelo que conhecem e copiam.