Se fosse música
Page Noire seria uma espécie de álbum-conceito híbrido, uma colaboração episódica de autores com universos distintos reunidos em torno de um projecto que, tendo motivos identificáveis, não se intersecta bem com nenhum deles. Neste caso a componente político-realista-grandiloquente é identificável com o argumentista Frank Giroud (
Decálogo), na parte mais nostalgico-poética-familiar sente-se a mão de Denis Lapière (
Le bar du vieux français), independentemente de quem escreveu exactamente o quê de cada uma das metades do argumento, duas histórias que se acabarão por cruzar. O desenho funcional e contido de Ralph Meyer serve (é a palavra exacta) de modo muito inteligente ambas, num caso (a “realidade”) com um traço grosso a negro a delimitar objectos e personagens, noutro (a “ficção”) com as fronteiras a serem marcadas pela cor, de um modo mais difuso. É esta a ideia que, em termos formais, vale o livro, para além do meta-piscar de olhos a uma realidade que está sempre a imitar a ficção.
Como sempre sucede as qualidades de uma obra têm as mesmas raízes do que as respectivas limitações. Ao completar-se apenas num volume Page Noire não sofre do “mal francófono” (em BD) de prolongar uma mesma história em vários volumes, o que leva a que, entre outras coisas, seja muito mais acessível comprar BD em língua inglesa (como se já não bastasse a globalização para impor o inglês). O argumento está muito bem construído para esse efeito, e o tom the “thriller” resulta eficaz. Claro que, para funcionar neste espaço-tempo os argumentistas têm de recorrer a clichés que ajudem o leitor a identificar as linhas de força narrativa, sejam eles relacionados com o conflito israelo-palestiniano (numa história), ou com o tensão geracional campo-cidade (na outra). Ou com o isolamento trazido pelo trinómio destruição/criação/culpa, que é comum a ambas e se vai tornando no refrão que une as diferentes personagens. Apenas três, não há possibilidade de caracterizar a fundo muitas mais. O que faz com que o desfecho seja absolutamente óbvio a certa altura, e sublinha quão inverosímil é o ponto de partida. Se a ideia é boa e a história está bem contada, isso não resolve esta questão de fundo.
Dir-se-à que todas as histórias são inverosímeis, e que as mais inverosímeis são geralmente verdadeiras. Ou que as limitações de uma obra (de Ulisses a Lost) são tanto menos evidentes quanto mais afinidades houver com ela, ou quanto menos disposto se estiver a ir contra o que “toda a gente acha”. É certo. Seja como for, é o detalhe formal pensado pelos argumentistas e definido pelo desenho de Ralph Meyer que, na sua simplicidade óbvia, faz com que Page Noire seja, no mínimo dos mínimos, igual à soma das partes, quando poderia ter sido muito menos.
Page Noire, por Frank Giroud/Denis Lapière (argumento) e Ralph Meyer (desenho), Futuropolis, 2010 (15/20)