A terra congrega forças, empurra a massa oceânica, explode uma, duas, dezenas de vezes, em chicotadas de magma contra a água que a tenta apagar. De cada vez que tal combate ocorre, não importa o século, a latitude ou a longitude, à laia de cicatriz, nasce uma ilha.
Um lugar feito de fogo e de sal, por vezes monstro, por vezes ninfa, que ainda sem o saber será porto de abrigo de aves migratórias, terreno fértil de mitos e lendas e sonho a arder na alma de todos os aventureiros.
Mas a que soa uma ilha? Que cor tem? Quem a habita? Quem a visita? Como respira? Que seres a animam e que misteriosas pragas podem atacá-la?
Ciguatera, exposição da compositora e artista visual Diana Policarpo, com curadoria de Chus Martínez, que se inaugura no Espaço Projeto do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM) a 22 de fevereiro, procura conduzir o público até algumas destas perguntas, fazendo-o refletir sem nunca oferecer respostas fechadas, uma vez que a artista acredita profundamente serem as questões “aquilo que realmente dá às pessoas liberdade de interpretação”.
A mostra é uma espécie de mapa a quatro dimensões para uma aventura contemplativa num oceano que, ao invés de água, é feito de ideias, mitos, lendas, descobertas científicas, som e imagem.
Ao som de Breath Movement 1,2 & 3, uma instalação de 10 canais de áudio em que cada coluna tem um som diferente, somos convidados a andar à deriva entre duas enormes esculturas em forma de rochas marinhas.
A paisagem sonora, que envolve a exposição, incorpora sons da natureza e de instrumentos como a flauta, “semelhantes ao vento e à voz”, com o objetivo de enfatizar o ambiente encantado e misterioso das Ilhas Selvagens
Embutidos nas suas paredes, completamente esculpidas à mão, encontram-se diversos ecrãs nos quais são projetados sete vídeos com imagens estáticas e em movimento, em diálogo com o som da paisagem sonora que envolve toda a exposição.
“Breath Movement 1,2 & 3 é uma composição com um movimento circular, onde a ideia de sopro, de respirações e de vento, como componentes que se distribuem muito pelo espaço, está bastante presente”, explica a artista.
Fruto de uma colaboração com Odete, colaboradora e amiga de longa data de Diana Policarpo, a paisagem sonora incorpora sons da natureza e de instrumentos como a flauta, “semelhantes ao vento e à voz”, com o objetivo de enfatizar o ambiente encantado e misterioso das Ilhas Selvagens, ponto de partida para o desenvolvimento de Ciguatera.
Co-produzida pelo CAM e pela TBA21-Academy [centro de investigação da Fundação TBA21 Thyssen-Bornemisza Art Contemporary], em parceria com o Instituto Gulbenkian Ciência, a instalação que chega agora a Lisboa foi apresentada pela primeira vez na Chiesa di San Lorenzo, no âmbito da Bienal de Veneza de 2022.
Traduzir a ciência sob a forma de arte e poesia
Com nome de doença, Ciguatera nasceu de uma viagem de investigação que Diana fez às Ilhas Selvagens, ao abrigo da comissão da TBA21-Academy e do CAM.
Por ser um dos lugares do mundo onde a contaminação por ciguatoxinas é das mais elevadas, desde a Idade Média que há relatos de as populações litorais deste sub-arquipélago madeirense serem afetadas por uma doença sem cura, causada pela ingestão de peixe contaminado com certos tipos de microalgas marinhas.
Ainda que o processo criativo tenha nascido de uma premissa científica, da convivência, ao longo de três semanas, com cientistas e astrobiólogos, bem como do profundo interesse da artista pelas “questões de saúde e de um ecossistema que só há 50 anos é uma reserva natural”, o resultado final é profundamente poético.
Ao procurar respostas que a ajudassem a entender os mistérios do lugar onde se encontrava, a artista foi-se deparando antes, sempre com mais e mais perguntas.
De interrogação em interrogação, entregou-se a um intrincado rizoma de histórias, lendas, factos científicos, dados geológicos, imagens e sons, materializando-o na instalação onde somos agora convidados a mergulhar.
Nela, a possibilidade de esbarramos com referências a treinos que se fizeram com astronautas nas Ilhas Selvagens, a fim de prepará-los para uma hipotética ida a Marte, é tão alta como a de encontrarmos uma fábula, imaginada a partir de dezenas de lendas ancestrais, na qual uma cientista com ciguatera manifesta um dos principais sintomas, as alucinações, acreditando ter sido curada por misteriosos seres marinhos, numa gruta subaquática.
Nos ecrãs, relatos medievais de ilhas que desapareciam quando queriam, convivem, lado a lado, com fotografias de cientistas a dissecarem peixes contaminados, um vídeo de uma ilha a falar de si na primeira pessoa e imagens das diversas espécies que a habitam.
No âmbito das histórias que aqui se contam, interessou-me muito trazer o aspeto da cura e do cuidado e mostrar a flora e a fauna, numa espécie de tentativa de levar o público a um lugar que não tem transporte ou um acesso
diana policarpo
“No âmbito das histórias que aqui se contam, interessou-me muito trazer o aspeto da cura e do cuidado e mostrar a flora e a fauna, numa espécie de tentativa de levar o público a um lugar que não tem transporte ou um acesso”, explica Policarpo.
Embutidos na rocha, soprados ao ouvido ou formulados num lugar invisível da nossa consciência, circulam assim todos os pensamentos, histórias, imagens e reflexões nascidos da jornada de uma amante de paisagens extremas, de botânica, geologia, música, arte, filosofia e, acima de tudo, de perguntas capazes de nos manterem a gravitar em torno dos mistérios da vida.
No limbo entre a ficção e a investigação científica, “com angústia ou alegria”, Ciguatera permite-nos “sonhar ilhas” à maneira de Deleuze. Que é “sonhar que nos separamos, ou que já estamos separados, longe dos continentes, que estamos sós ou perdidos – ou então é sonhar que partimos do zero, que nos recriamos, que recomeçamos”.